domingo, 26 de setembro de 2010

frio
frio bom, dos que dá pra
aguentar sem camisa
o cortante da brisa interferindo na respiração

frio dos que faz vicejar
o que há muito era sufocado pelo
calor incubado

frio do roxo das pontas dos dedos
bom, já digo, é pouco
comparado ao frio de dentro
me pergunto se é drama
ou é mau indício

o vento diz que não
que a maré é boa
e que as velas tendem aos lugares inesperados
à praia oculta
à cidade impostora

ela vem faceira
ela vai faceira
easy come, easy go

me pergunto se é drama
ou se confio em meus olhos

o som da lâmina de uma faca ao ser desencrustrada de um peito

sento no banheiro
e cada ronco do motor
que ecoa na rua
eu suplico a alguém
que seja ele indo embora

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

encontrei um mar revolto
que mede um metro e meio
um mar em meio à terra de
ninguém: eu, terra. delimitada
por água que confinou as
minhas marés

ao presentear a lua
ilusão de movimento
de uma legião de impostores,
eu no sofá vejo por canto de olho
que projetam teatro de sombras
na periferia do que enxergo

na periferia do que paro e assimilo

a tela da TV nos imagina,
convexa,
refratária ao que têm a dizer
mostra reflexos alongados
qual fantoches
sentado sofá no chão em
volta de mim

quem sabe?
as testemunhas somos eu
e a reca
os atores são os outros
e embora não muito diferentes

fazem coisas diferentes
e aparecem na TV

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

o meu corpo que não dorme
tem que ser diferente do que trabalha 
e toma ônibus

enquanto o meu corpo jazeria 
o dia inteiro, o resto da vida
na cama, levanto poeira com 
impensadamente sair andando
no meio de um sonho senão
me atrasaria para a aula

o corpo que não dorme estendido 
na calçada, a multidão ignorando,
é o mesmo que passa a noite
digitando sei lá o quê
visualizando sei lá o qual
preparando sei lá o onde

esse corpo chega perto de acordar
tão perto quanto o sono o não prende
meus dedos o computador represou
e meus olhos alguém levou embora

se sobrei alguma coisa sou migalha
de pixel insone

preciso parar
antes que o tempo me atropele

Pensei em Caeiro em pessoa

há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (onde)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (se)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (que)
há metafísica bastante em não pensar em (por que)
há metafísica bastante em não pensar em (que)



(há) nada.

sábado, 4 de setembro de 2010

as paredes são transparentes
se é preciso ambientação
diria ainda que os camundongos
guincham antes de serem içados pelas caudas
e postos na porta exígua do labirinto
em que serão expostos ao clássico
cheiro - só cheiro - que perseguirão


em geral encontram o botão vermelho
após algumas voltas
e quase com certeza preferirão o choque
a passar fome


um com ar de melancólico -
só fingimento - é o mestre da repetição
rouba o queijo dos outros
um gosta da sensação de não ser ele mesmo
por isso finge que fareja
um outro gira numa roda metálica
num protótipo de entretenimento
infindável, que é melhor que comida


e preferirão vidrados o choque
que se ericem os pelos e calcinem as patas,
está bem, enquanto conseguirem comida
ou enquanto girar lá a rodinha, gostam de
estar restringidos a algo que julgam invisível

A flor mais grande do mundo brota-lhe do suspiro final

em um prédio de apartamentos
um velho morrer a portas fechadas isolado do resto
e de seu corpo nascer flores
das pústulas amanhecidas que a escuridão do quarto vem regar
quer dizer que os parentes demorarão vinte dias a dar pela falta
os vizinhos demorarão menos,
quinze dias,
graças ao fedor

um velho morrer e não saber que morto
não sente, às vezes, a imobilidade
dos membros, logo depois de acordar

e simplesmente sobre a normalidade das
pernas matinalmente trêmulas desejar
uma fruta da fruteira da mesinha da cozinha

um velho que lúcido é morto só tem um desejo
que é não tropeçar num tapete ao entrar no corredor
ou ver que o cachorro não babou os jornais

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Tragaluz.


con fingida lágrima, con simulacro de comprensión
J.C. Onetti

En la ciudad no se puede vivir
Sin tener oficio conocido:
Nicanor Parra

percebi que tinha um velhinho, parecia cego, me olhando com olhos baços, suando muito, parece que estava chorando também,
como se custasse muito esforço me ver ali,
como se a qualquer momento o semáforo fosse abrir e ele cegasse justamente por isso
das duas uma, ou estava esperando que um carro me atropelasse ou queria falar comigo
o que vier primeiro
emprego não devia ter, para estar ali àquele horário
pelo menos não tão bom quanto o meu
só armazenar o querosene de avião sob a língua
e borrifar na hora certa os malabarismos eu aprendi há muito tempo
engraçado que sempre repito os mesmos dois ou três movimentos
não sei se as pessoas reparam
esperou mesmo o sinal fechar, me abraçou disse
você é o cuspidor de fogo mais comovente que eu já vi
me viu passar recolhendo e não deu dinheiro 
não quis conversa, nesse dia os cigarros estavam me deixando afônico
começou a falar, a propor algo vagamente no turbilhão da rua
que eu o seguisse ao metrô, como o alice e o coelho
aproximou muito a boca da minha orelha
semi-sussurro nos barulhos comuns que viu um homem ser morto
facada
em público uma vez me perguntou se isso me afligia
será que ele queria me vender algo

[a salvação por meio de drogas
  a salvação por meio de bíblias
  a salvação por meio de amendoim torradinho]

um preto tocava saxofone ali perto
nem ele tinha dinheiro nessa época
todo mundo trabalhando na rua pra ganhar um por fora
não adiantava, os chapéus continuavam vazios
as pessoas de olhar reticente
dentro de carros bufando de insatisfação

aquele cara me atordoou
nem sei se foi porque chegou perto demais de mim
embora corresse, não me senti ameaçado
se ficasse ali talvez envelhecesse junto

comecei a andar sem olhar para trás
atravessei algumas ruas que começavam a ser mais desertas
sol, uma presença incômoda indo pelo ralo
tremi, abri a porta, fiz um sanduíche, acendi um baseado, deitei no sofá, olhei para o teto, mais opressivo hoje
com olhos de velho chorando concreto numa praça
terrivelmente sozinho o ventilador não espanta moscas
talvez tenha me dito algo de tigres gêmeos e espelhos dialéticos

sou num verso de nicanor parra
numa rua latino-americana
índio fumando na esquina com um tênis só e a tribo já não há

tragafuegos en el desierto
deserto ele mesmo
scott walker:duchess