quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Tragaluz.


con fingida lágrima, con simulacro de comprensión
J.C. Onetti

En la ciudad no se puede vivir
Sin tener oficio conocido:
Nicanor Parra

percebi que tinha um velhinho, parecia cego, me olhando com olhos baços, suando muito, parece que estava chorando também,
como se custasse muito esforço me ver ali,
como se a qualquer momento o semáforo fosse abrir e ele cegasse justamente por isso
das duas uma, ou estava esperando que um carro me atropelasse ou queria falar comigo
o que vier primeiro
emprego não devia ter, para estar ali àquele horário
pelo menos não tão bom quanto o meu
só armazenar o querosene de avião sob a língua
e borrifar na hora certa os malabarismos eu aprendi há muito tempo
engraçado que sempre repito os mesmos dois ou três movimentos
não sei se as pessoas reparam
esperou mesmo o sinal fechar, me abraçou disse
você é o cuspidor de fogo mais comovente que eu já vi
me viu passar recolhendo e não deu dinheiro 
não quis conversa, nesse dia os cigarros estavam me deixando afônico
começou a falar, a propor algo vagamente no turbilhão da rua
que eu o seguisse ao metrô, como o alice e o coelho
aproximou muito a boca da minha orelha
semi-sussurro nos barulhos comuns que viu um homem ser morto
facada
em público uma vez me perguntou se isso me afligia
será que ele queria me vender algo

[a salvação por meio de drogas
  a salvação por meio de bíblias
  a salvação por meio de amendoim torradinho]

um preto tocava saxofone ali perto
nem ele tinha dinheiro nessa época
todo mundo trabalhando na rua pra ganhar um por fora
não adiantava, os chapéus continuavam vazios
as pessoas de olhar reticente
dentro de carros bufando de insatisfação

aquele cara me atordoou
nem sei se foi porque chegou perto demais de mim
embora corresse, não me senti ameaçado
se ficasse ali talvez envelhecesse junto

comecei a andar sem olhar para trás
atravessei algumas ruas que começavam a ser mais desertas
sol, uma presença incômoda indo pelo ralo
tremi, abri a porta, fiz um sanduíche, acendi um baseado, deitei no sofá, olhei para o teto, mais opressivo hoje
com olhos de velho chorando concreto numa praça
terrivelmente sozinho o ventilador não espanta moscas
talvez tenha me dito algo de tigres gêmeos e espelhos dialéticos

sou num verso de nicanor parra
numa rua latino-americana
índio fumando na esquina com um tênis só e a tribo já não há

tragafuegos en el desierto
deserto ele mesmo
scott walker:duchess

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