terça-feira, 29 de setembro de 2009

Primeiro poema em segunda pessoa

Ut em latim é um indicativo de forma
O nosso "como" ou "de forma"

Tu, em português, és indicativo de:
Dúvida
Arrogância
Vontade
Singularidade, em suma

E por ser o contrário de ut é fácil
pensar, ut retro, que Tu és um indicativo
de conteúdo
Controvertido

Imagética do dia em que não a vi

Reluto em querer ouvir outros falar de outros
Não quero falar de mim para outros
Nem dela para outros com relação a mim
Com ela de mim ou de outros tampouco
Não consigo sem ela ou com
Nem comigo dela
Nem sem ela com outros
Mas com ela sem outros
Olhares e sentires e falares
Trocas singelas e arroubos

Quero saber como, se é verdadeiro o que sinto,
pode ser falso o que escrevo
e com o que lido?
Duvido da capacidade, sendo falso com o que lido e
O que sinto,
De minha escrita de consertar isso
Sempre me fazendo hesitar
Sai triunfante por conseguir

Não há uma imagem mais correta [e
                                         fria e superficial]
Que a de um espelho e a de um suspiro
Ouvir o que têm a dizer
Não apaga a predisposição a que
Sua voz ao telefone seja
Metonímia de sua figura
-Embora não preencha sua
Ausência- e não substitua
A tendência a me preterir
Em benefício de minhas hesitações

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Elegia Pré-Adamista

A enxergo como quero.
Por leitura labial
a reflito/refuto/repito/
conflito/contemplo/contra
exemplo/comparo/
preparo/prenuncio/reparo

'Tis not about setting traditions
up for the smiles are unpredictable
unsteady; they don't assure my life
They mock me instead

A primeira vez que, sozinho,
Cheguei ao Rio de Janeiro
Me assalta quando os leio
Contraídos, descontraidamente
Genéricos, enigmaticamente
Exortando a trabalhos

São sinceros e claros
Boca-do-inferno revisited
Não se compara à
Torrente, a plaquinha é
desnecessária. Tudo tem
um significado.
Resta decifrar.

Poesia fraca em momento desesperado

Morfeu me largou para ver se eu morria
Sarcástico
me marcou com olheiras e
Tirou minhas noites
Assim eu poderia pensar nele e nela
Com mais calma e por mais tempo

Queria ser deixado em paz
Às portas da morte tranquilo
Aceitando

Às portas da noite deitar e dormir apenas
Sem pensar Em morrer, Em acordar
em saber, em maiúsculas

Às portas do mundo esperando poder
Entrar

Às portas da poesia esperando poder sair

À beira de um ataque
Coração
Sono
Nervos
Pânico
Sentimentalismo


Meu cérebro escorre
E eu struggle para manter os olhos abertos, não piscar em reverência
Senão pereço de vez na tentativa

domingo, 27 de setembro de 2009

Trova para aquela de quem dissinto

A cabeça treme
E oscila em
Dúvida - um zunido
Zurra em meu crânio
E não é
A poesia pedindo
De joelhos para
Ser escrita

Tenho pensado muito
Nela, mas o
Zumbido me atrapalha
A visualizo minha
Na ponta dos
Dedos e da
Língua

Tateio e não
Alcanço, ela tateia?
Não, sequer rastreio
Esta possibilidade
Mas anseio por
Um avanço iníquo
Que traga à tona
A verdade

sábado, 26 de setembro de 2009

Fumígeros

Um acorde destoa dos outros
Hábitos de sempre, que agora tremem
Ante a presença deste novo
mais expressivo que, dominante,
Afoga os antigos em obscuridade de que
Tentam sair
Afogam o recém em proeminência
Mais expressiva que a dominante
Ante a presença deste novo
Hábito de nunca que agora impõe
Um acorde que destoa dos outros

One way or another

Minha poesia - assim como eu -
Precisa de óculos
Que guardem não a distância,
Mas a proporção entre tudo e nada

Feita tortuosa e fora de horas
A recolho no ar, se
Vítima de um desajuste meu
Me vitima Com golpes cegos
De baques surdos
Faz perder o foco do que não é
Abrangido por um sentimento meu

Só tenho tido um sentimento
E um acorde palavroso, despro-
porcional para ele

terça-feira, 22 de setembro de 2009

Baker tweet faulkneriana

A god in progress
Fulfills its purpose
While in process
Neglects its project
He beats it, Moses
As the chosen
One bakes old
Buns in the oven
Shakes his hips
Just as they've spoken
When looking for a noun
To rhyme over and over

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Poema bórgico que deve sua eficácia à pontuação

Toca a campainha e sai correndo
Não quer vê-lo, chorá-lo ou rí-lo
Arrependida não olha atrás
Para não lembrar do erro crasso
A culpa é sua e quer dizê-lo afagando seu rosto
Sentindo na palma da mão as lágrimas quentes
Sulcarem-no
Não existe coragem de encará-lo esse momento
Ainda que devesse reconhecer
Que trocar acusações aos gritos por telefone
É pior

Quer que lhe acaricie o rosto e sinta a felicidade
Que não consegue traduzir, palpitar
Nas polpas de seus dedos
Almeja gritar
De alegria
De exultação pelo que seja,
De medo, angústia e paixão misturados
Mas não quer que ele parta
Quer a ouça, quer não
Quer sabê-lo ali para ela e seus gritos
E quer sabê-lo sabendo dela ali
Para seus desvarios e estertores fingidos

Corre porque teme qualquer reação
Mesmo a desejada
Fora uma tarde maravilhosa
E se ele achasse que foi só isso?
E se ele achasse que não valia a pena insistir em nada nunca?
Ledo engano, fora mais e ela sabia
Um sorriso e um gosto que ele deixara em sua boca lhe diziam
Que ele concordaria

Não como submissão,
Mas como constatação inevitável
Se discordasse, acabava ali tudo
Tanto o que viera buscar
Como o que viera trazer
Tinha esperanças, entenderia

Não obstante, corria ansiosa, temendo o mundo
Que só ele podia proporcionar

Brasília II

Brasília é o céu de pernas abertas
Esperando concreto que a penetre

Virgem insólita largada no meio do deserto
Pedindo carona às tábuas de argamassa que a
defloram

Geme e rodopia sozinha, acompanhada e satisfeita
Ao som de Tom Jobim em versão maracatu
Música daquela primeira vez

Não houve dor, não houve gozo
Houve o sim da descoberta

Dos muitos que a tentaram, mas não conseguiram
Dar ainda um filho

Será que é infértil?
Não, é só uma fase e passa

sábado, 19 de setembro de 2009

Took my baby away

Y cual es el nombre de usted?
Crix Crax Crux
Esto no es nombre qué se le dé a una persona. Está descumpliendo las leyes, no se puede hacer camping en este sítio.
Es una rebelión existencial en contra la opressión de la Babilónia, tio. Qué sentido habría en pedir permiso a alguién?
Usted ha violado el artículo veinte y cinco del código ciudadano:
Ningún ciudadano puede establecer su vivienda a menos de diez metros de la vivienda de otra persona.
Y me parece que tiene perros ahí, no? Viola por lo tanto también el artículo ciento once:
Ningún ciudadano puede quedarse más de dos minutos a menos de trés metros de otro ciudadano o ser.
Es una revuelta que propongo aqui, camarada. No hay cómo volver en lo que está hecho. Me importa un carajo lo que pase, de aquí no me voy hasta ver completada la destrucción de los opresores.
Señor Crix Crax Crux, vayase a vivir la revolución en otro lugar e lo suficientemente lejos de los ciudadanos amantes del orden. Ahora tengo que irme que ya llevo un minuto e cuarenta y siete segundos charlando y esto no puede ser bueno.
No se vaya, quédate un momento más. Hagamoslo juntos.
Ya veo que un revolucionário nunca dejará su puesto. Tengo qué arrestarle pero se me acaba el tiempo. Espera aquí un segundo a que me vaya a buscar las esposas. Así tendremos mas dos minutos para relacionarnos.
De aquí no me iré.
Ya vuelvo.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Tive algum

E houve esse dia em que percebeu que nunca a vira sorrir. O que não era motivo para desespero. Eu não sorrio nunca percebeu. Te achava normal até hoje. À mesa de um bar. Ambos com sono e sede. Seria momento perfeito para alguma explicação. Ansiava por isso. Ela encarava fixamente tentando perscrutar em vão alguns desígnios. Ele o mesmo. Traz mais uma por favor. Me passa o isqueiro. Mas você nunca tentou sorrir. Eu tentei uma vez quando minha mãe me deu o lordbyron de presente de aniversário. E conseguiu. Eu gosto muito do lordbyron. Lembrar como ele ia me arranhar toda e destruir meus móveis e livros me fez me abster de uma emoção mais incontida. Como você contém uma emoção incontida. Lembrando de como o gato arruinaria minha vida. Apesar de eu gostar muito dele. Nunca quis inconter uma emoção. Em especial alguma que te fizesse sorrir. Não. Você ficaria mais bonita. Eu não preciso ser bonita porque sei que idiotas como você morrem de amores por mim. Ficaria mais magra. E isso me faria morrer mais ainda de amores por você. Mentira. Você já morre muito de amores. Não é possível superar isso. E se eu te largar você sorri. Não. Por quê. Porque você não destruiu meus móveis e livros.
Houve um dia em que percebera que a resignação ante este fato era o único caminho. Com cócegas você ri. A última pessoa que me faz cócegas foi meu pai há mais de quinze anos. E já então eu não ria. Então tá. Faz-se um pacto. Você me dá um sorriso de leve e eu pago toda a conta. Minha reputação e dignidade não valem tão pouco. Valem. Muito você se engana. Então paga a conta sozinha. Eu não. Você bebeu tanto ou mais que eu. Mas você não quis me dar o sorrisinho. E daí. Que todos os problemas têm origem em você. Paga a conta logo e vamos embora de uma vez. Não. Só se você der o sorrisinho. Quer morar no bar agora então. A gente vai assim que você sorrir. Que insistente. Só por isso. Prepare-se para dormir aqui nesta mesa mesmo que eu vou indo embora.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Geoglifos

Com
Umente
De
Com
Por
A
Pararestas

Labirinto

 Às autoridades competentes e a quem possa vir a interessar,

Um método estrangeiro de tortura propugna que se encarcere o prisioneiro em uma sala onde não entre luz som ou calor. Isolado de qualquer influxo externo lhe ministrariam refeições a intervalos de tempo cada vez menores. Não percebendo por via biológica sua passagem o encarcerado passaria medí-lo por meio da únicareferênciade que dispõe: as refeições que toma. Crendo-as espaçadas por intervalos regulares e semelhantes aos da vida cotidiana, julgaria haver passado muitíssimo tempo por haverem passado muitíssimas refeições, quando na verdade o pontual controle destes intervalos permitiu que lhe dessem a impressão de haver passado anos preso, quando mal transcorreu uma semana. Alijado da noção de tempo seria fácil arrancar-lhe informações, tanto por seu desespero e fragilidade emocional quanto por um simples argumento que postularia haver a guerra acabado e com ela a necessidade de segredos entre os inimigos que teriam agora feito as pazes, chegado a um bom termo por via diplomática. Este segundo argumento é fraco e facilmente refutado por aqueles que nem no próprio país confiassem. Espiões duplos ou triplos não se veriam nada compelidos a entregar informações seja a quem assinava seu contra-cheque, se é que o sigilo lhe permitiria ter um, seja a quem o remunerava paralelamente. Parece ser que a grande estratégia divulgada pelos manuais de sobrevivência para eludir as intenções de torturadores tão especulativos quanto os que engendraram este prodígio filosófico seria infligir a si mesmo pequenos cortes e pelo tempo que demora a cicatrização, inváriavel por seguir ritmo biológico alheio a fatores exógenos, calcular o real intervalo entre refeições. Desbaratado o estrategema, bastaria ao auto-flagelador regular a própria alimentação podendo inclusive perder algum peso. Parece ser que o labirinto perfeito teria paredes forçosamente transparentes para privar o que tem a intenção de dele escapar da noção de espaço. A regra aqui nesse método tão engenhoso seria a mesma, com objetivo semelhante inclusive. Resta saber se o aplicaram corretamente alguma vez, e se sim, que resultados obtiveram-se.
Desponta, não obstante, a questão da aplicação prática de tal método. Não há dúvida de que os requisitos mínimos são um prisioneiro e uma sala que cumpra os critérios listados acima. Há, no entanto, questões não resolvidas. Quanto à qualidade da comida, subsiste a dúvida sobre se deve ser da melhor ou da pior. A melhor comida compeliria o cativo a comer mais e mais, sendo mais fácil empurrar-lhe comida a intervalos menores encurtando o processo o que como contra-partida acarretaria gastos imensos em itens supérfluos de alimentação - supõe-se ser desnecessário dizer que o prisioneiro deva ser encerrado isolado na cela; contato humano nenhum tornará o método mais eficaz - por outro lado ser a comida de baixa qualidade minaria a moral do preso fazendo-o contar tudo mais rápido. Os defensores desta vertente ignoram o fato de os soldados detentores de patentes mais rasas estarem amplamente acostumados à pior comida que o exército possa conseguir-lhes. Não obteriam, portanto confissões, argumentam os dissensores desta corrente que parece ser majoritária ignorando que este método é único e não serve para ser aplicado em soldados de baixa ou nenhuma patente. A escassez de salas tão bem isoladas quanto se requer, restringiria sua aplicação a casos especiais a serem julgados por uma comissão conjunta formada pela fina flor da corporação militar e da corporação sofista.
Quanto ao propalado método de contagem do tempo atrelada aos períodos de cicatrização da pele não há o que temer, a não ser que o preso seja masoquista, disposto a submeter-se a inúmeros cortes, o que providencialmente enfraqueceria mais ainda suas defesas psicológicas, não parece provável que algum preso recorra a este método. Não se lhes dá qualquer indicativo de qualquer coisa, se lhes ministra refeições apenas. Mesmo nos casos mais do que comprovados de capturados que se fazem passar por loucos é fácil coibir a utilização deste método fornecendo-lhes talheres, colheres preferencialmente, de plástico.
Não há, no entanto, - e muito especula-se a respeito na atual literatura - nos anais registro desta prática, conquanto a documentação acerca de outros métodos seja farta e conclusiva. Pode haver um medo subjacente, não necessariamente um apelo à moral e à humanidade no tratamento dos presos, mas um receio de que, se disseminada e incorporada à rotina tanto deste país quanto dos inimigos, esta prática podia levar à formação de um contingente bastante grande de pessoas menos aptas à vida comum que o pior dos mutilados. Nenhuma sequela física ou psicológica se equipararia do que a que aqui pode infligir-se. É, portanto, um medo quase transcendente da realidade física. Um medo da posta em prática de um método que só pode ajudar, que se não superado pode vir a solapar as bases da ordem e da moral desta nossa sociedade que desde sempre preza pelo exercício da razão e da soberania.

Um cidadão preocupado e consciente.

* Agradecimentos ao Thiago pelo apoio logístico.

Nascituros revêm

...a mais vistosa violeta velada da vila
Finnícius Revém - James Joyce



Espreita porta adentro
Sorri sorrateira para ninguém
Parece fingir não perceber

Entra e resolve

Olha de esguelha,
Parte e
Quero crer que se
Certificava de que

Nela imagino um sorriso mínimo
Infinito ínfimo
Condescendente irônico que
Quero crer que (h)ouve

Mas sim,
Sai triunfante
Por conseguir

quinta-feira, 10 de setembro de 2009

De tábuas e canoas

 Ele se apaixonara por ela na primeira vez em que a vira fazer um movimento no ar para ativar o sensor de movimento que acendia as luzes do corredor.
Ela nunca se apaixonara, mas se excitava quando ele sussurava Proust em seu ouvido.
Como se por ondas a afeição alternasse entre um e outro, sobreviviam agarrados à tábua de palavras francesas que os ajudava a flutuar apenas. Estavam à deriva e não se amedrontavam, porque haviam escolhido. Não buscariam salvação nem por palavras, nem por atos, sentimentos ou pensamentos. Não queriam salvar-se nem por si mesmos, pois fazê-lo diluiria justamente o que os juntara. Ele sempre gostava de sussurar-lhe um clichê que ela achava ridículo demais e fazia questão de demonstrá-lo com seu ar blasé e seu sorriso desconfiado e ao mesmo tempo condescendente: Perdidos haviam se encontrado.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Nochevieja

Era perto de quatro da manhã e havia sons que nunca abandonavam o mundo a essa hora. Desde as dez perambulava em trajetos curtos e já sabia de cor o que veria neles. Só voltaria quando totalizasse vinte e dois reais, dos quais já tinha dezoito. A partir de certa hora, certas coisas ficam mais fáceis, enquanto outras ficam mais difíceis. Sente algum medo de que algum bêbado o agredisse de novo e tomasse seu dinheiro. Um vigia gira o chaveiro nos dedos e assovia uma música da novela. Nenhum bar fica mais aberto a esta hora, quando ficavam o escorraçavam. Uma vez fizeram mais e lhe bateram: merecera uma justificativa ao menos, fedia. Não se afastava muito da porta do mercado vinte e quatro horas. As pessoas que entravam lá, pelo menos as que não eram como ele, tinham dinheiro pra gastar, até pra desperdiçar se as comovesse o suficiente. Era melhor ter armado a barraca num lugar mais escondido, pra dentro dos bambus; os guris dão muita bandeira. Faria diferença se não voltasse ou não voltasse com os vinte e dois reais? Conseguiriam sem ele? Não, eram os fardos. A mulher era uma inútil que só queria ser bem-tratada, não cuidava dos filhos e não conseguia trabalhar em nada. Dos filhos era difícil lembrar o nome de todos de uma vez, eram muito parecidos porque sempre estavam com fome e fazendo barulho. Por que será que trepar uma vez significou ter de trabalhar pra outros pra sempre? A senhorinha se assusta com a abordagem e se desvencilha dele rapidinho. Nem dá tempo de contar a história ensaiada para levá-la às lágrimas. Porque será que os filhos não podiam fazer aquele trabalho? A barba está muito desgrenhada e ela e ele se separam bufando, cada um com suas razões. Mulher é mais provável de dar dinheiro, homem dá dinheiro quando quer se livrar logo e não é forte o suficiente para xingá-lo. Consegue setenta centavos de um casal que deve ir comprar camisinhas. Deve ter dado o troco por causa do alívio de não terem sido assaltados logo ao sair do carro. Estavam com cara de assustados. Está escorado numa barra de ferro onde acorrentam-se motos e vê um carro entrar muito rápido no estacionamento. Sai de dentro um homem de camisa regata e boné, trôpego e desacompanhado. Forte, sem dúvida, mas seu tempo de reação a esta altura deveria ser lentíssimo. Ignora três tentativas de abordagem e por fim cambaleante escora-se nele. Eu e minha família estamos acampados em um terreno aqui em baixo. Há três dias não temos o que comer e só volto pra lá com uma cesta básica. Já tenho dezoito reais e preciso de vinte e dois. Se o senhor achar que estou mentindo e quiser conferir a gente entra lá e compra juntos a cesta. O do boné está visivelmente alterado e há uma chance. É fácil perceber que tem dinheiro, tanto pelo tênis que usa quanto pela carteira que tira do bolso. Solta-se do apoio do outro para conseguir mais mobilidade. Abre a carteira para buscar alguma coisa, sem notar a existência do outro. Se pergunta se irá ajudá-lo. Está muito distraído vasculhando a carteira. Não hesita, dá-lhe um encontrão que ele não percebe de onde veio. O outro tão bêbado não esboça reação alguma ao cair no chão. A carteira que caíra a poucos metros é prontamente chutada longe. Uma mão grossa e afável o ajuda a levantar. Se incorpora dá uma gargalhada e entra no mercado. Olha debaixo de carros e não vê a carteira. Será que já a levaram. Não lembra o rumo que ela tomara quando a chutou. Caiu dentro de uma boca-de-lobo. Levanta com dificuldade a grade. Enfia a mão na massa viscosa e procura. A carteira caiu aberta dentro do bueiro e todo seu conteúdo está molhado e fedendo. Primeiro atira os documentos longe e os perde de vista porque caíram em algum lugar entre um carro e o meio-fio . Tira algumas notas do compartimento, não poderia usar os cartões sem ser detectado mesmo. As notas encharcadas se desfazem entre os dedos. Salva duas mais intactas, deterioradas mas melhores que as outras que não conseguiria passar adiante. Uma de cinco e uma de vinte reais. Tem agora quarenta e três reais e a frustração de não poder comprar duas cestas básicas, e isso que já tivera sonhos. Nenhum estabelecimento dá desconto a alguém vestido como ele. Tudo sai mais barato pra quem é rico e não é só porque eles tem mais dinheiro. Entra no mercado sob o olhar incrédulo do vigilante, já conhecia esse, ele sempre tinha cara de desconfiado. Vê o homem da carteira debruçado sobre carrinhos de compras, brincando de deslizar pelo chão liso do mercado. Bate contra uma gôndola, o som dos vidros se espatifando, quem sabe se encima dele, é engraçado. Está feliz de ter dinheiro. Vai comprar algo para si com os vinte e um reais que sobrarem. Sem saber como, antecipa-se a isto e já está na seção de queijos. Afinal de contas tem quarenta e três reais e isso o desobriga . Toma um queijo nas mãos e pela primeira vez não se importa com o preço que possa ter. Aproveita a doce indução a que submetem os clientes os mercados. Pega um vinho e para completar um charuto. Os charutos não estão à mostra, tem que abrir um armário protegido para buscá-lo. Chega no caixa sob o olhar condescendente da atendente, será que os quarenta e três reais que está prestes a gastar o tornam menos desgrenhado? O gerente olha desconfiado para ele quando retorna com os charutos. Não se importa sempre olharam assim mesmo, mas o mundo é dele agora. Paga tudo, sai do mercado. Hesita pois sempre pode voltar à barraca ou não.

sábado, 5 de setembro de 2009

Correio elegante e rude

Sont les mots qui vont tres bien ensemble


Por saber e não me esforçar
Em ser desajeitado
Tomar palavras erradas
Quando o que se quer dizer é simples
Seguir caminhos estranhos quando
O objetivo é tão palpável
E se quer dizer apenas o que cabe
Atingir um fim que não conheço
Mas já imagino perfeito

Telegrama versificado

Hesitou em pedir-lhe um cigarro. Lembrou-se de Teleco, o coelhinho. Não pediu. Achou melhor comprar. Ela disse que por qualquer moeda lhe daria um cigarro. Deixou intacto o fato de dá-lo ou não de graça. A conhecia de há pouco. Não queria precipitar essas coisas. Buscou o isqueiro na mochila. Com o cigarro na boca viu aquela que o aturdia entrar no banheiro. Devolveu o cigarro. Pediu-lhe que o guardasse por enquanto. Buscava evitar que o visse fumando. Falaria com ela que parecia haver desaparecido no banheiro. Atam por enquanto uma conversa sobre literatura inglesa. Ela lhe diz que ou fume o cigarro ou guarde o isqueiro. Aquilo dá a ela muita vontade de fumar. A deixa ansiosa. Ainda espera. A que o aturde não sai. A conversa se desenrola sobre um assunto batido sobre Henry Miller. Ela coloca o cigarro dele virado ao contrário no maço para distinguí-lo depois. Vai mandar por e-mail um excerto que chegara a decorar certa vez. Diz que mande. Que terá prazer em lê-lo. Não se sabe porque nesse momento não lhe dá o endereço do e-mail. Tenta matar o tempo desfiando amenidades literárias. Nada muito profundo. Gosta de debater estas questões. Se distrai e não a vê sair do banheiro. Quando se dá conta ela já está longe. Se afastando mais. Corre. Procura um assunto. Tem como me mandar um e-mail com as provas antigas. Você é um folgado. Não anota o e-mail dos monitores e depois eu tenho que perder meu tempo conversando com você. Não capta o tom. Dias depois se arrependeria de não ter respondido. Conversar comigo nunca é perda de tempo. Eu mando. Vai demorar um pouco. Eu tenho que verificar com as meninas se nós juntas temos todas as provas. Tudo bem. Vou anotar meu e-mail num pedaço de papel. Você me manda. Revira mais uma vez a mochila. Não tem nenhum papel aqui. Minha bolsa está numa sala aqui por perto. Eu poderia ir lá e pegar minha agenda. Não vou. Você já está mexendo na sua mochila mesmo. Achei. Não perca esse papel. Ele é precioso. Como eu iria perder um papel deste tamanho. Não esquece de me mandar. Tá bom. Tchau. Tchau. Lhe diz que seu isqueiro não está funcionando. Ela diz que use o seu. Falam agora de Ferlinghetti. Lhe dizem que saia. Não fume lá dentro. Ainda aturdido. Revolve tudo o que pôde dizer. E a vida prossegue de forma mais tortuosa que antes. Percebe que não entendeu nada. Que tem pouco a fazer nessas situações. Que ficar rememorando não ajuda.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

Paralipse

Prosaico mora longe
Pega três ônibus para ir trabalhar
De contínuo
E não sai para beber cerveja com
Os colegas depois da jornada

Poesíaco habita escondido, sobe nas árvores
E tira fotos com detalhes fora de foco
De si, do outro, de seu
Mundo, dos outros mundos e
do mundo dos outros

Insólito quando trombam na rua
Um sem graça ajeita a lapela
Faz menção de seguir caminho
O outro o abraça e recolhe
Gentilmente a pasta que caíra

Não que o um seja rude,
Mas
Já haviam trombado outras vezes
E Poesíaco o desconcerta

Não que o outro seja assim tão afável,
Mas
Já tentara trombar com um na rua e
Falhara: Prosaico o aturde