Houve um saxofone tocando naquela noite, disso eu lembro nitidamente, achei que era um tipo de augúrio, o que de alguma forma me fez lembrar da história na qual os romanos liam o futuro nas vísceras de animais sacrificados para este justo fim, algumas vezes águias.
No final nem era um augúrio e mesmo se fosse não faria diferença, pois ocorreu nada ou quase nesta noite que mesmo assim foi fatídica – de um jeito ou de outro eu sempre acabo voltando à história da águia dos romanos- ela fica lá espreitando as brechas do meu subconsciente, até enquanto eu como um churrasco grego às duas da manhã me fingindo de paulistano.
Era um standard do jazz que sem dúvida brotava das entranhas da terra; estando eu na W5, cercado de escolas de idiomas e faculdades, lugar sem casas, restaurantes ou bares, no qual via de regra vigorava um silêncio catacúmbico, não me faltaram indícios de que a tal música viesse do parque da cidade.
Desmascarei rapidamente essa hipótese, o som reboava ao redor de mim. Talvez eu estivesse sendo vítima de um ritual de uma seita secreta, se é que existe seita a descoberto e se é que as que assim existem são seitas mesmo, de saxofonistas cujo Barão Samedi fosse Parker e o diabo Benny Goodman ou Kenny G. Até porque eu sabia que na parte do parque mais próximo de onde eu estava não havia bares e muito menos um onde tocasse Alabama.
Conheci um trompetista - Westony, o nome – que transpunha solos famosos do Parker por diversão, só porque a surdina fazia o flugel parecer um sax alto, tudo isso só para demonstrar desprezo por Gillespie e seus asseclas dissensores.
Não era Alabama a emanação do sax/flugel com surdina, era uma daquelas que todo mundo conhece e não sabe de onde veio, eu podia assoviá-la se eu soubesse. Não era aquela típica baboseira easy listening sem substância que poderia já ter sido regravada mil vezes e tocar na antena 1. Era uma música muito boa, célebre desconhecida: alternava-se uma execução primorosa do tema, cuja melodia evocava uma raquetada, amenizada por um tipo de espuma, saindo de um flugelhorn, com os solos mais mirabolantes.
Sempre existiu por aí a história de que o Vivaldi escreveu as quatro estações para provocar sensações extra-auditivas no ouvinte. Eu não acreditava muito nessa possibilidade até o pedaço dourado de metal retorcido com botões e palheta me fazer lembrar de novo dessa história que paira no ar esperando por confirmação.
Li nas vísceras do animal, ou da soja, ou do trigo que os açougueiros gregos sacrificaram justamente para minha leitura, que aquele saxofone era metafísico e fui para casa dormir.
Uma exposição – Thomas Farkas no IMS. Um disco – Lives Outgrown, Beth
Gibbons. Um livro de poemas – Blue Dream, Sabrinna Alento Mourão (Círculo
de Poemas, ...
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