segunda-feira, 30 de agosto de 2010

o caminho acompanha os pés que se perderam
sem encontrar o fim da rua
na linha de chegada dos corpos cansados
das almas lavadas

quando morrem o caminho não acaba,
só sepulta sob o asfalto
porque morrer não é o fim
é só o fim de deixar coisas para trás.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

queria aprender a chorar em silêncio
imitando certos pássaros que piam à noite
que dispensam gotas de pios na forma
de lágrimas
que refletem a lua em seu corpo prateado,
que ninguém vê se não presta atenção aos
barulhinhos dessas gotas, quando qual moedinhas
c
h
e
g
a
m
ao chão

terça-feira, 24 de agosto de 2010

A mãe chamava de bagunça, 
balançar de pernas pro ar, chutando nuvens. 
O avental sujo à porta, às vezes virava de costas, 
trancava-se. 
A menina no balanço deixava a mãe, assistindo da janela 
enquanto lavava pratos, apreensiva; 
sempre podia cair bater a cabeça, 
ou um vento arrastá-la pelos ares: 
levantando-lhe o vestido, jogando seu corpinho de cabeça 
contra uma árvore. A menina conversa com pássaros 
mas disso a mãe não sabe.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

o banheiro do cinema dá pra augusta
dos mictórios debaixo da janela
o que o sol permite é um retalho
ordenado de caos calmo inundado
de seus olhos e meus olhos, que o pouquinho
de céu entre duas varandas
e uma antena parabólica cegou

o banheiro do cinema tem cortinas
pretas que dão as costas para os azulejos
brancos, banheiro comum, de bar
escondido das pessoas que escondem
pela grafia errada do luminoso toalete

a rua, no que atroa lá embaixo,
dos passos de gente sufocados no barulho
que produzem, sem saber aonde ir
desorientados com o próprio espalhafato
o banheiro dá para a ordem dos labirintos
para ordem dos vasinhos nas janelas

anonimato detalhado de muita gente, convincente
o banheiro do cinema dá pra multidão de personagens
sem rosto ou história, só com a calçada nas mãos fugidia
da uma só tela que é o quadrado da janela na parede.

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

firme e forte
fina flor de pele
desabrochando sob meus dedos

afundo a fundo
minha língua em você existir

fricção.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Se a superfície do concreto irromper em flores,
que serão dedos a engatinhar pela cidade, novas
de onde antes eu não via algo além de áspero
desdivulgadas flores de rostos outros desabrochando
dos corpos que a cidade enterrou sob ela mesma

se os escapamentos dos automóveis espirrarem pássaros
(rasante alergia causada por pólen novo)
que nidifiquem nos pilares dos palácios do governo
por dentro
mobília antiga enxergada por janelas que acabaram de trocar

é porque sim
porque durante um engarrafamento às seis horas da tarde
ocorreu a alguém subir ao capô de um carro
gritando sobre fim dos tempos à luz do sol se pondo

quando um caminhão atropelou a pessoa tombada no asfalto
e o sangue vertido se infiltrou asfalto adentro, regando
as sementes soterradas nas entranhas da civilização,
plantadas nos telhados de uma outra civilização: que a atual
soterrou. O sangue do atropelado fez as flores, rasgando
a cidade por dentro, irromper.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

armários esvaziados
para fora dos hábitos
chapéu, violão, caneca,
ingressos, céu, ônibus,
livraria, calçada, poste,
ideologia, sorriso

os mundos que pertencem
são já outros
malas prontas em um trem
de partida: só de ida
alguns segundos escorreram dos
dedos da ampulheta agora é
novo de novo, obrigado

a moldura entortou de vez para
adaptar a perspectiva ao quadro

domingo, 8 de agosto de 2010

sentada nos banquinhos
que alguém deve ter cobrado taxa extra
para posicionar debaixo do prédio
ali sob as árvores
, que ninguém usa

de onde é possível flagrar o porteiro
dormindo em sua guarita
e classes-média de relance às janelas debruçados

banquinhos brancos
que assistiram passar cachorros,
donos de cachorros e caminhantes;
todos perturbados por folhas crepitando ao
ser pisadas
uma bicicleta eventualmente atravessa os olhos

é neles (pintura semi-nova,
pio de pássaros) e a partir de dormir neles
olhando no alto o enroscar das nuvens
que ela pensa
o meu último dia aqui foi o de céu mais amplo
tão amplo que derrubava uma névoa fina
quase antiga sobre as coisas, que eu enxergava filtradas
poeirentas de secura por entre as quais
eu me movimentei como num pântano,
pé prendendo em galhos enlameados
as coisas me agarravam pelo pé durante um lapso
antes de me encaminhar rumo a mim mesmo lá no outro espelho
, que são seus olhos,
me arranhavam ao me desvencilhar
o céu de duas cores abriu a mão em um aceno
o meu último dia aqui foi de objetos mais
ao alcance dos dedos, que estavam curiosos
em deixar suas digitais no que não mais pertenceria ao toque
de antigamente
e souberam farejando a secura que era hora de ir indo
ir indo tirando o pé da lama, movediça:
respingando como as nuvens que alguém torceu com tanta
força até desaparecerem, deixando o céu limpinho

que aí sobrevindo se meteu
todo gripado trovejou no seco pra se despedir de mim

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

os pés da mesa descascaram
e lá parece uma caverna
com os livros arrumados na estante
e com aquele hálito de tempo
preso entre os dentes com dois habitantes
presos entre os dentes

depois que os filhos foram embora
e só sobraram os dois no baralho, no piano

o pátio com jardim de inverno
com plantas escalando as paredes cobertas de musgo
com janelas encima e embaixo
silenciaram a conversa que mantiveram
entre si a noite
quando as crianças dormindo

a piscina estancou de azulejos trincados

dedos enrugados sobre a teclas de quando tudo passou
nos retratos da parede
é só onde imobilizado persiste

no sorriso da fachada
cáries onde os pássaros pousam
no grunhido da porta que é
o dos habitantes, há o caseiro também
espanando o pó
como se houvesse volta, mas não sei

as cartas se empilham sobre a mesa de jantar
e o pulso do piso esmaecido da cozinha
e um vaivém de passos antigos
e de correrias de meninos, velhos agora
prováveis latidos a encher a casa por dentro
estofar o que agora murcho
jaz a um fim de rua, sem saída

claustrofóbico telhado que a cada minuto mais próximo de ruir
chega mais perto do chão
abafa a respiração do que sobrou lá dentro
do velho, da velha e dos móveis saudosos dos tempos em que
as janelas armazenam ninhos de pássaros
nas reentrâncias que o tempo arranhou
coçando as paredes, desfez a pintura
e uma revoada de percevejos coloniza sob o colchão

os olhos da casa semicerram a rua
cada vez mais 
uma cadeira de balanço
em um alpendre embalado pelo vento

terça-feira, 3 de agosto de 2010

as bocas se procuram no escuro de um túnel
incomunicado
as bocas desviam de si e do céu
saída sem contato com a entrada

as bocas de um túnel não encostam
imersas no véu
bre, que palavra nenhuma toca
esperam a língua do trem

as bocas tateiam
recobradas luminárias, a luz no fim
em que começo de beijo e
carícia e conversa reatada

as bocas que um túnel recém dá à luz
e um brisa - como um grito - que atravessa
as bocas-de-lobo do esgoto
e uma brisa - como um susto que atravessa - como um rosto -

(ruído ao fundo de trem de carga passando ao largo
ruído mal formado de voz descarrilando)

espelho paralisado monólogo
das bocas que se procuram
percorridos por nenhum trilho