domingo, 10 de julho de 2011

o autorretrato duplo do schiele
com um cabisbaixo olhando a contragosto,
forçado mesmo para o espectador
cujo chapéu é o felizinho que encara
não tem o ar de imprecisão e de liquidez
que os outros quadros dele
sem precisar de ambientação, o
recado ali é meio nítido

são sempre os vesgos, um olho no céu
o outro nas pegadas, e sua atenção errática
seus gestos fragmentários
seu ar de quem sabe que não vai pagar as contas

ali não é a corporalidade, as formas
ele mal usa a via estética pra nos dizer
que as testas franzidas, as duas
a preocupação bifronte com não conseguir guardar silêncio
com ter de significar é inescapável
o espaço em branco é a praga
sendo o inseticida o ruído visual, sonoro, textual

argumento ornitológico três

um tigre, no que se aproxima, mais ladino que
feroz não indaga nem coloca diante da presa uma prova de títulos
sem tentar convence
valida a si mesmo e ao que carrega

das listras à postura, transpira uma auto-confiança
que não precisa berrar
ela existe até na maneira com que a pelagem ondula
quando a mãe tigre corre em caçada

o tigre existe, não precisa de um espelho
pra dizer isso

discordo do borges,
o tigre não precisa da faca do onceiro,
discordo com vontade,
é o onceiro que deve o nome de sua profissão
ao objeto:
o algoz deve o nome da profissão à atividade
a vítima acontece,
casualidade.
como se pedissem pra digitar uns caracteres meio borrados,
por segurança
como se desconfiassem
ou mesmo já soubessem de antemão
e evitassem
como se no frigir dos ovos o veredito
dependesse de pro juiz ter rolado um sonho ou não
no dia anterior

parece que o ventilador é o único que não
olha com o queixinho levantado na expectativa
chia apenas

esse é um dos contra o ginsberg

a caneta trêmula emula
geracional e irascível contra moinhos de ventos
vultos tornados monstruosos pela escuridão
empunhando cataventos de energia eólica
na estrada, que apesar das quatro mãos, dos pedágios
se ilumina só muito de vez enquanto
de resto rixa

vai e vem, viravolteia
dá uma sambadinha
com o que vai imaginando que combate
e tem uma grande causa na ponta
uma inacabada de delinear, mas grande

a caneta – pra usar um erro – efabula
ensaia exaustiva um discurso recebido e mal existe plateia,
quem dirá contrarregra, roteiro

fende o silêncio em um antes e um depois
e tenta não nos deixar dormir
tenta ensurdecer convencendo da constância do seu sussurro
e por isso se camuflou na audição das pessoas

a caneta arroga tagarela
a despeito.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

vendo duas bocas, de ocasião
usadas em bom estado
pássaros não têm peso
ninguém é poleiro de pardal viva
(pululando a três metros
fugidio, nunca tangível)
presença fantasmática

nem encosta num morto no chão
(patinhas para cima
bico tornado oblíquo pelo
pescoço truncado)
a textura da pena imagina-se
emprestamos corpo ao que é
intuída sombra e frágil luz

não é porque pássaros não têm peso
que alçam vôo

sábado, 18 de dezembro de 2010

um anão espirra
há um ano
resiste cáustico à condescendência
das risadinhas
de quem passa
e que segundos antes de ele
chamar a atenção
o teria pisado
sem querer
se os olhos de conta 
de um pássaro de vidro atravessarem minha pele, 
esbarrarem nos meus 
ossos e pousarem entre meus dedos 
da mão direita sem estar contagiados pelo tremor, 
cronometrarei a pedido deles a frequência cardíaca 
dos espasmos tossidos por acomodações de terra 
dentro do meu peito


transparentes introspectivos
tufões intrusivos não convidados,
são a pedra rosetta de 
hieróglifos privados
um rato silente, monástico de modos
emborcou um contêiner com estardalhaço
espalhou cheio de lixo sua busca copista
em detrimento de detritos, atrás de comida
e de uma dimensão menos confiável da sua tarefa
roeu o fundo do contêiner raspou tanto
degradou a junção da rodinha de metal
com o contêiner em si
corrompeu o claustro numa missão
solitariamente
a busca que o encapsularia de vez
o contêiner emborcou e mesmo com todas
as cascas de alimento a disposição
não se embriagou na glutonice
nem se resignou a ter perdido o fundo
que raspava, quiçá procurando um alçapão
que o escondesse de vez

agora presença escancarada
a céu aberto, a vista de todos que perscrutavam
o estrondo do metal raspando o asfalto
indagando tesouros ocultos lixo adentro
envergonhado de fracasso ignorante de outros esconderijos
por perto optou pelo esgoto, cansado de roer
aliás, aposentou-se como impostor
declarado de sua antiga personalidade

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

avental plúmbeo para resguardar
as vozes do ambiente externo daninho
para fazê-las rebotar e voltar à garganta
retroengolindo vômito próprio

represadas as manifestações
contidas as externalidades
açoreado o rio que liga uma língua à outra
emasculados manequins desfigurados rostos
pra começo de conversa
carapaça disforme de carne fraturada
e fome, cuja sede dos dedos
escarafuncha outras carapaças e carcaças
que semeadas no solo
começam a brotar
no campo de possibilidades
onde a catação de costas encurvadas

canibalmente almeja
à forma e ao vigor da presa vestigial
vigia com os olhos recém digeridos
em torno outros corpos
sob intermitência reticente de estrelas

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

jazigo de que flores brotam
colonizado por vida qual um livro
cujas páginas amarelaram

enclausuradas a si mesmas
entregues às traças pioneiras

jazigo cuja flora intestinal
viceja às custas de rachaduras
na pele da terra que sepulta
monologuei baixinho com meus botões
alheios a que os tamborilem dedos ávidos
escarafunchando as vozes do meu casaco
usado dos friorentos anteriores

um fio solto, uma fibra desgarrada ou
tornada a tecer, um volume no bolso incômodo
outros que habitaram este casaco imiscuem
seu dna ao meu a cusparadas
de passado imposto
Te interceptei a tempo, enquanto você apertava o botão do elevador que eu demoraria três minutos e meio, aproveitados pra escrutinar seus olhos em busca de vestígios de nós, para lembrar que estava pifado. Te interceptei é modo de dizer: eu ouvia Vanguart enquanto você convencia a si mesma a dar uma volta, quem sabe se pra pensar ou pra esquecer do tempo que eu acabei de pedir. Quando você me pediu para ir trancar a porta, tentava me estimular a revisar um texto tentando fugir da visão caótica das nossas coisas imiscuídas impregnando a mesa tal e qual o cheiro de verniz e lixo impregnaram o saguão do elevador durante o tempo todo que durou o duelo dos olhares. Neste instante o celular que você esqueceu aqui, usualmente pouco precavida, tocando o alarme que nós combinamos que seria a senha para nos acordar de uma soneca vespertina me diz menos sobre a marcha das coisas numa língua mais incompreensível do que a do amor, o celular me interpela na língua do atropelo, improvisa como eu improvisei mecanismos de achar as razões que me desestrangulassem. Te interceptei na justa encruzilhada em que diversos de mim tratavam de se fazer de surdos aos apelos próprios e aos dos outros. Quando eu me lembrei do mau funcionamento do elevador de serviço, você entrou de volta no apartamento me fazendo achar que tinha capitulado, só foi atrás de papel para se desafogar, assim como eu faço e tento fazer, embora já seja tão inútil quanto previsível – e verdadeiro – dizer que não quero males distribuídos a esmo, nem quaisquer outros males. Um beijo de esquimó nos selou, logo da chegada que deixaria por último rastro seu antes do tempo a faixa estreita dos seus olhos que a janelinha de vidro da porta do elevador antigo permitiria.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

a chuva correndo fora estrondeia
um reflexo do estrépito dentro de mim
mas suas lágrimas não são as minhas

o pior dilúvio sou eu às portas
da maior alegria.

quarta-feira, 17 de novembro de 2010

a chuva perdeu as horas
outonalmente, como folhas de livro
desgrampeadas pelo caminho
e permeou tubulação - recrudescida
pelo acúmulo de detritos atravancando
infiltrados nas vidas alheias -
subreticiamente lavando

a chuva açoita as costas nuas das casas
arranhões visíveis na pintura, comprovam
que a chuva perder a hora e sedimentar
aluviões de apagamentos nos canos
sob a cidade, contaminando os poços
de amnésia,

depois de perder as horas; anestesiando,
a chuva disseminou uma indolência tardia
ninguém mais trabalhou
no fim da tarde, deitam nas praias do rio
contaminado indolente também
conjecturando o céu e as garças, mais limpos
cuja memória, a chuva erodiu

a chuva cava buracos no chão, lixivia e
nubla um solo do qual passam a brotar
cigarras contagiantes pigarreando a deixar
cabeças preenchidas por
nuvens apenas, orfãs de corpo

terça-feira, 16 de novembro de 2010

rufem os tambores, o homem-bala-de-canhão prepara um vôo sobre a platéia
o alvo é a rede de proteção, localizada ao fundo da lona
a propulsão pode aplicar força demais nos pés dele
aí nem o capacete dá conta, e saia da frente quem estiver na frente
a complicação são esses dois aros em chamas, no meio do caminho
e calcular o lançamento pra não acontecer o que aconteceu ao último
homem-bala-de-canhão, que deixou orifício ainda não remendado na lona
quase em cima da arquibancada, passou reto destinado a pousar
uns bons cem metros fora do perímetro a milímetros do cacto que
lacerou o macacão, azul estrelado reaproveitável pelo novo
cuja próxima façanha pretendem que seja planar sobre sem atingir os tetos
de oitenta e três carros compactos, intrepidamente

longa duração, sem proteção
homem-bala-de-canhão, voa mais alto que um avião.
os livros escoltam o sono
encostam qual cachorro
fingindo que as costelas
esfregadas na perna alheia
são sem querer, o dono sabe
mas finge que não, prefere
ver até onde vai a carência
os livros são cachorros mudos

o frio invadindo pela janela
é tão desejado quanto o golpe
de misericórdia sob a forma de
último suspiro, dos sons da rua calados
o que não é o quarto calado
o lirismo dos nomes calado

os livros escoltam o sono sem dizer patavina
como se carregando um caixão pelas alças
desenganados fumegantes ainda
mantidos acordados pelo frio que vem da janela
artilharia
batalhão
batalha
balestra
besta
bombarda
bombardino
brinquedo
infantaria
(sétima) cavalaria
embarque
fragata
galeão
filibusteiro

embuste

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

um pássaro entrou pela janela aberta
no silêncio pegajoso que só o calor pode propiciar
à procura de um canto para dormir
vasculhou armários e gavetas, os livros e as roupas
e os papéis não deixavam espaço
suas garras firmaram-se na tela retrátil do notebook,
a qual achou volátil, mais quente ainda
sem abrir o bico
tentou a luminária, quente demais
de debaixo da cama o mau hálito de um monstro
o enxotou - tá ocupado, amigo -
quase depenado, desistiu logo do ventilador
o vai e vem da maçaneta o esmagaria dentro
de pouco
o barulho no violão pareceu insuportável
chegou a cogitar a fresta entre a cama e a parede
e preferiu, foi ficando, sem palavras;
não se sabe o que irritou, o calor extra dos lençóis talvez
o fato é que o flagrei outro dia com as patas no meu rosto
tentando habitar minha boca
nidificar na minha voz