terça-feira, 20 de outubro de 2009

A culpa (pt. III)

Sai do bar aparentando indiferença. Afinal fora com indiferença que ele tivera o desplante de começar a imaginar coisas sobre eles dois. Aquela metáfora selara a falta de interesse dele por ela, então era hora de deixar de se esforçar desta forma por algo que a ela já não aprazia e não interessava muito. Fora interessante no começo indagar até onde tudo aquilo levaria. A descoberta e a identificação. Eram poetas, mas passou a haver algo mais a uni-los, ou era o que ela achava. Nunca se considerara e não queria ser o pilar disto tudo. Mas sabia agora que a ausência de empenho, com que agora se propunha a tratar isto tudo, traria a ruína. Estaria distante para dar a ele a chance de provar que a merece. Dissipando assim aquela aura unilateral a que ele hoje submetera a situação. Se fosse somente para depender dela e de sua admiração pela poesia dele, estariam agora fadados ao afastamento, à frustração no mínimo. Ganha a calçada e se põe a caminhar a esmo. Passa pela pracinha perto daquela loja onde comprara uma camisa para ele. Aquele banco quebrado perto do poste intermitente já fora deles, já trocaram muita poesia ali, sussurando-as. Ou será que o banco fora dela apenas? Senta-se. Não naquele, mas em outro banco. Compra pipoca. Se dedica a alimentar pombos.  O sol às portas da morte, prestes a se pôr. Babás recolhem, com olhar displicente, os carrinhos e as crianças. Um homem senta-se a seu lado. Oferece um cigarro. Quer puxar assunto. Ela se nega. Tudo o que menos quer é ouvir falar em um deus agora. Ainda mais de um deus a quem ela tem que pagar para acreditar. Usar oferta de cigarro para se introduzir uma tentativa de conversão foi golpe baixo demais. Levanta-se, planeja voltar ao apartamento. Quem sabe qual foi a reação dele depois da conversa? Terá feito as malas? Estará à sua espera de joelhos, com um maço de flores silvestres, as únicas que consegue roubar da frente do palácio municipal, na mão, suplicando para que tentem tudo outra vez? Toma uma rua que sabe que não vai dar no prédio. Quer demorar a chegar. Pensa em queimar todas as poesias, as suas e as dadas por ele. A razão estava com ela, nunca o idolatrara em demasia. Seus comentários eram polidos, pouco efusivos ainda que reconhecesse que eram freqüentes. Ele por outro lado mostrava-se pouco interessado em qualquer coisa ligada a ela. Achara sempre que era por seu caráter reservado. Até que veio à tona, ele estava nessa porque se sentia bem, endeusado pelos comentários dela. Ele não se propunha a retribuir. Entra em um restaurante para pedir um café. Lembra do vídeo do Depeche Mode, aquele com o carro a andar em marcha à ré e o motorista, com a cabeça coberta, não pode fazer nada. Talvez descreva bem a situação porque talvez nada vá mudar, ainda que ela tente. Desiste do café e pede um conhaque. Tira um bloquinho da bolsa, sempre o tivera ali preparado para estes casos. Põe-se a escrever graficorragicamente. Com uma fúria que os gregos atribuiriam à força dos oráculos. Não necessariamente sobre o que estava vivendo ou sobre o que queria que acontecesse. Escreve e se resigna a fazê-lo. Mais um conhaque, por favor. Já trago. É um poema porque está em versos. O mais longo que já fizera. Paga a conta. Vai para casa com a impressão de que o poema, muito longo e muito confessional, está inacabado. Concisão nunca fora o forte de nenhum dos dois, eram poetas, em suma. Chega a sua rua ruminando decisões que deveria ter tomado para que soubesse lidar com o que vem justo agora. Cumprimenta o dono daquela loja de vinhos ao lado da entrada de seu prédio, compra um jornal e sobe.

2 comentários:

Luci disse...

concisão realmente não é o forte do poeta...pt IV? sai qdn?

Plas disse...

Hugo, você andou bebendo das fontes Aganipe ou Hipocrene para escrever tanto ultimamente? Wow. Nem lembro meu nome a maior parte das vezes e você escrevendo loucamente. Queria esse tipo de inspiração.