sábado, 17 de outubro de 2009

A day in the life

And once again the monster speaks
Debonair - Afghan Whigs


Tiro os óculos e tiro o Scott Walker da vitrola, já é a terceira ou quarta vez que ele está cantando Seventh Seal esta noite. Trago fumaça e repouso o cigarro no isqueiro. A máquina de escrever deu um problema na correia e há algo a ser escrito. Ligo para ela porque se estiver acordada pode me alentar neste momento quase difícil em que estou ficando sem cigarros. O vinho já terminou há tempos, uma perda menor. O telefone dela não atende. Deve estar acordada, afinal dormir muito é para os fracos. Deito-me sobre o tapete puído, encaro o teto. Há uma mancha de infiltração perto da luminária. Impressão minha ou está aumentando? No prédio em frente ao meu há dois apartamentos com luz acesa, mas não vejo nada além disso. A cidade tem uns barulhos que são particulares a esta hora da noite. Me agrada saber que por muito só que esteja, uma vida pulsa dentro do emaranhado de postes acesos, portas fechadas e motos ocasionais se afastando. É boa essa solidão dentro da multidão. Gostaria de ver as reprises na televisão agora, se não a tivesse vendido há um tempo. Grupos de adolescentes passam em arruaça na calçada catorze andares abaixo de minha janela. Gritam, me exasperam. Hesito em retirar o Nabokov da estante e lembro da história, quando Harvard quis que ele lecionasse russo sob o argumento de que ele era ótimo escritor tanto em russo quanto em inglês, Jakobson se opôs retrucando que seria como chamar um elefante para dar aulas de zoologia. Ela me liga. Eu sei que é ela porque sei que ela sabe que eu sou o único que ligaria àquela hora. Me recuso a atender. Falta-me sono, mas falta-me também disposição para manter a conversa que viria. Uma mulher começa a gritar em algum lugar. Percebo que é no apartamento logo abaixo do meu. Já há uns cinco minutos que ela está gritando e percebi agora apenas. Me vem a sensação de que estive ouvindo o mesmo grito já há algum tempo. Ignoro o grito. Resolvo descer e tentar obter vinho no bar que há aqui perto. O elevador está pior que o do Pedro Juan Gutiérrez, não funciona desde que eu vim morar aqui. A opção pela escada é compulsória. Um certo alvoroço no andar da mulher que grita me diz que algo pode ter ido errado ali. Gente tentando arrombar a porta e um burburinho. Pelo menos oito pessoas, todas acima de oitenta anos; quase todas mulheres, tentam forçar a porta e gritando o nome da aflita falham. Desço mais um lance de escada, pensando em Raskolnikov, eu poderia ter matado aquela mulher e saindo aproveitando um descuido dos pintores. Quem me dera tê-lo feito. O grito já me perturba. É bom descer um pouco e com a garrafa de vinho espairecer. Tomar o sereno desta cidade que é mais acolhedora quando vazia. Abra a porta do prédio e duas prostitutas novas ali vêm falar comigo. Recuso-me a dar dinheiro e nesta hora sexo e anfetaminas são o que menos procuro. Elas saem fingido estar contrariadas. Compro o vinho, pois o bar estava aberto. O senhor que atende me joga um olhar complacente. Dono de bar toda a vida, era fácil para ele saber como é precisar de vinho na madrugada e como é desesperador não obtê-lo. Ele sorri e pergunta de futebol. Quero sair dali aquele bar é personalista demais, com aquela foto dos filhos ou netos atrás do vidro do caixa. Saio vagando a esmo e quanto mais me perco mais me vejo perto do meu próprio prédio. Estou considerando ir andando ao apartamento dela. Ouço o grito se aproximando de mim. É difícil acreditar que estou paranóico. Ouço o baque surdo enquanto tento tirar com a mão a rolha do vinho. Sempre esqueço de sair para caminhar com um saca-rolhas. É o corpo. A mulher se precipitou da janela. Engraçado como cair de um prédio não machuca a pessoa. Vi apenas algumas escoriações no rosto. A posição em que ficaria tinha seu quê de cômico. Uma massa informe unânime. Ouço a multidão atroando escadas abaixo. Em breve tomarão a calçada. Entro por um beco para que não me vejam e me decido. Irei vê-la. O fato de estar ali presencialmente a impedirá de recusar minha presença. Não será como ao telefone. As partes movimentadas da cidade de dia são as menos habitadas à noite. Esqueci de comprar cigarros. Paro naquela pizzaria vinte e quatro horas e compro um maço e uma caixa de fósforos. Compro um bombom para ela, apesar dela se mostrar reticente em aceitar presentes, quer se fazer de difícil incorruptível. É incrível como as cigarras não param de serrar nem de madrugada. A cidade está infestada de pequenos besouros que pulam na jugular da pessoa também. Esses eu mato chutando. Derrubo um e vários me atacam. O frio está longe de os incomodar. Um homem com uma jaqueta me pede que acenda um cigarro para ele. Um homem dentro do carro e pergunta se estou indo para a igreja e me oferece uma carona. Três mulheres barbadas me assediam ao mesmo tempo, querendo que eu lhes vendesse cocaína. Não pode haver más intenções depois das três da manhã. As pessoas querem se ajudar. Ouço música alta ao longe que parece ser rock 'n roll de hoje em dia. Evito aquela direção. E tomo uma rua que tomba para a direita. Três guinadas depois, chego ao prédio. O zelador me interpela. O interfone está quebrado. Subo de uma vez e toca a campainha. Ela abre a porta de robe, está fumando um cigarro também. Tenho certeza de que ela sabia que eu viria, pois na mesa estão postos dois copos daqueles pequenos e uma garrafa ainda fechada de Jack Daniels, ao fundo toca Gardel: El dia que me quieras.

3 comentários:

Jillian disse...

Nossa, li sue texto todo, sério :C muito bom, você escreve deliciosamente bem, guri. É tudo bem descontraído e viciante. (R)

Katrina disse...

Sabe que pareceu que eu havia escrito isso, claro, se não fosse o fato de ser bom e acima disso, de ser tão real que eu mesma poderia ter mesmo vivido isso.
Eu não me lembro bem das escadas do Pedro, me lembro bem mais da cama dele molhada de rum e suja de tabaco.

E nosso Jack Daniels nos espera com dois cubos de gelo e um Gardel ao pé do ouvido

Anônimo disse...

Na linha oito, "reprise" está como subst. masculino. É assim mesmo? Que eu saiba, é feminino.
Na linha dezoito, está escrito "nulheres".
Na linha vinte e oito, acho que falta um "r" em "caminha" ("caminhar", né?).
Correções úteis, creio eu. Vai ver você digitava ouvindo Pearl Jam de novo. Gostei do texto, apesar de ter me dividido tentando encontrar o conflito, e não diga que não sabe fazer prosa.
"Não pode haver más intenções depois das três da manhã. As pessoas querem se ajudar." - Verdades universais by Crema - copyright. (Copyright é o caramba, usarei!)