terça-feira, 27 de outubro de 2009

Eu sou a morsa

Abri os olhos e ignorava a abrangência dos efeitos dos meus atos. Ignorava também que estava vivo, abri os olhos, contudo, e vi a luz mais intensa: o sol mais ubíquo e feio me fez inalar sua presença pela primeira vez em algum tempo, saturando a atmosfera próxima pendularmente; ora aquiescendo, ora recrudescendo. Me perturbavam essas oscilações. Pressentia que no final me marcariam indeléveis; reconheci por fim minha animação suspensa e a ela não respondi, conquanto não me angustiasse este fato. Intuí que teria de esperar, buscava então, sem muito sucesso e sem perceber, a transição entre dois hiatos - sabia que ao ruidoso borrão escuro seguira-se o sufocante silêncio do borrão claro, não sabia tecer o que ligasse os dois. Conectava sem dúvida os momentos pertencentes a cada um e não conseguia distingui-los na massa compacta e aleatória; dois dialeticamente unidos estágios orbitavam indiscerníveis em torno da uma coisa de que tinha consciência: a dor que docemente constrangia não preocupava em absoluto, quase como a volúpia da vertigem. Aos poucos foi se esgueirando um renitente som de brusca freada. Pervadindo minhas elocubrações , não sobrepujou, é claro, a lasciva asfixia, foi obtendo, não obstante, gradual proeminência; pungente cruzado timpânico. Já não estava tão absorto e começava a saber de algo de minha condição de agora, um frio cortante perpassou meu corpo imenso submergido em luminosidade como o alvo crivado de facas com a garota amarrada e bonita. O resumo da fase dois era três sensações, dor, frio e som de freada brusca. Não lembro se a fase um resultara em duas ou três sensações, lembro do vento e lembro que sentira outras sensações. O conhecimento dos próprios estágios, portanto, era precário. Da articulação entre eles, mais ainda.
Vislumbro sombras e as pareio fora de ordem, pois manejo habilmente o que vem à tona: selecionando, suturando e abarcando; seguindo ditames que me vêm na hora. Esta noite eu, como o filho pródigo, lembrei de mais coisas. Pequenos alfinetes que alguém cravou em meu cérebro e esqueceu de tirar. Os olhos abertos nunca me permitiram enxergar, é, portanto, útil entregar-me a exercícios de imaginação: Uma jaqueta de couro com um cheiro que sei que é marcante sem me lembrar de qual é. Um isqueiro, um sorriso que não lembro se é meu ou de outros. A mulher com o chapéu acenou para mim, ou estaria esbravejando? um fragmento de poesia e me aventuro no cone de luz futuro, lembro bem ter declamado este num café por aí solto. Hoje senti que tocavam minha pele com dedos de borracha menos frios do que o ambiente. A pressão deles me fez vir um pouco outra vez.  Onde me apalparam é melhor não perguntar porque não sei. Continuo ignorando onde estou, embebido em claridade. Consigo abrir e fechar os olhos já a meu bel-prazer, o que não traz lá grande diferença. É claro e pouco úmido, me sinto permanecendo num quarto que entupiram de travesseiros: Tudo é branco com cheiro de talco e não posso me mexer, o que me impede não são correias e sim algo fofo e por isso mais difícil de enganar/escapar. O zumbido já identifiquei, foi como apanhar moscas, aos punhados, com as mãos, é de moto, não sei qual ainda, mas tenho a impressão de que já pude identificar os modelos pelos zumbidos dos motores. Moto potente com o zumbido esmaecendo ao fundo, talvez junto com o pôr-do-sol mesmo. Se bem que isso já seria clichê demais, só faltaria aquele cigarro do caubói para completar.
Percebi o toque de um retângulo que desconfiei ser uma bandeja pressionando minhas pernas e tinha a impressão de estar sentado. A lateralidade veio hoje também - por um instante soube que o zunido agudo de um ventiladoraspiradordepórespiradorartificial estava apenas de um lado da minha cabeça e não de outro. Um trem que senti vir descontrolado na direção do meu lado, esquerdo ou direito não importa, e que senti que não ia parar tão cedo, o sabia longe ao menos por enquanto. Tato, experimentei tato também. O tato de identificar pressão sobre a pele eu sempre tive consciência de ter preservado, agora aflora o tato de sentir dor e sentir texturas. Toquei num lapso de tempo que julguei curto um líquido duro que sabia não espesso, Áspero. Sala ampla como um deserto, sei que seu teto existe, mas sei também que está à distância da ionosfera: Tudo é branco os bancos estão lá, abusam, e são brancos os bueiros e letreiros luminosos também são, sei que existem porque esbarro e me contundo e se abro os olhos e fecho quando quero isso se dá a um preço. Se me é dado ouvir um zumbido, por mais contínuo que seja há um preço também a ser pago que desconfio que descobrirei em breve qual seja
Hora vaga vem tudo desaba ao redor de mim, me vejo escorregando em algo poroso que rasga minhas roupas por quilômetros e quilômetros e isso não é infindável. Sinto um baque e retorno à escuridão branca. Saber que estou imóvel estirado em algum lugar me revolta bem pouco, aquiesço rapidamente retornando à lânguida calidez do que penso conhecer. Uma revelação me acomete quando deixo de girar como naqueles brinquedos de parques de diversão baratos, a cegueira não me impediu de constatar que eu sou a morsa, estirado de barriga para cima em algum lugar frio e luminoso do universo, não fui gordo, mas pressinto a gordura caindo pelos lados da rocha que me escora durante meu banho de sol, o qual me cega ainda que abra veementemente os olhos.
Hoje obtive dos deuses permissão para abrir a boca, o que apenas trouxe um hálito externo gélido cheirando a aparelhos metálicos e que não me reavivou o mais mínimo. Senti minha boca expelir nada, tanto antes quanto depois desta aquisição do ambiente, minhas presas se fincaram no ar e perfurando-o extraíram uns resquícios do que já me ganhara minha plena atenção. não conseguiria mais me desvencilhar da mistura clorofórmio, aço inoxidável, gelo seco: Um Dry Martini que supunha verde com uma coisa vermelha encostada no fundo da taça. O sol rodopiava acima de mim no mínimo três vezes por dia, pois a boca que eu abrira já não pudera fechar por nada, ruminava a bebida que ele, como bom iniciador de vícios, me oferecia de graça, descobri ter dedos de um lado do corpo, dedos que apalparam a mesma superfície aquoso rígida de sempre.
Metal sendo esfregado contra asfalto ao longo de um período quase longo cheiro de gasolina e churrasco de morsa se eu fosse escritor e portanto mais presunçoso ególatra acreditaria ser um inca que foge dos espanhóis, senti pontadas no braço e sono como se estivesse há tanto tempo querendo fazer a viagem que minhas peripécias para consegui-lo fossem a viagem em si. Um vulto me assustou muito ao passar pertíssimo da minha boca, tenho motivos para crer que é um daqueles tentilhões que limpam os dentes das criaturas costeiras e com isso conseguem comida, uma dor do lado me fez me perguntar se meu corpo, já pesadíssimo, não está sobre o braço, sinto que esmago algo que me incomoda;
iraq body count e continuava bêbado e continuava de cabeça para baixo tentando entender se o mundo são correntes quebrá-las todas é destrui-lo. O último cigarro apagado não é mais especial porque não nos é dado saber ser ele o último ou o primeiro de um maço longínquo porque interminável e tinha uma moto e tinha uma namorada capaz de se ruborizar - O sexo era bom e as máquinas melhor ainda de cujos fluidos bebi não me lembro quando se tive capacidade de me ruborizar ou a velocidade me arrepiava demais que eu acabava não prestando atenção a coisa alguma. A lembrar-me da mão fria e alongada que toquei pela primeira vez sem olhar nos olhos e do metal frio incandescentemente alongado sob minhas pernas, a rugir obscenidades aos que ousavam cruzar seu caminho porque hoje a morsa sabe não saber onde está nem porque de estar onde sei que ligado a tubos estou. Talvez esteja morto, mesmo que isso contradiga o que já disse, e tenham instalado esta lâmpada especialmente potente no meu esquife, o que pode indicar que estou vivo a desandar em elocubrações que me trazem à memória cascatas de vidro a fluir de meus olhos prestes a morrer; e Quisera Estar Morto sim, para que um último pensamento tivesse sido sobre os seios acolhedores abrigos noturno diurno por vezes da namorada ruborizada.
Estive estirado a um sol que me acolheu e me trouxe aonde agora jazo lembrando desprotegido da lua que me obriga a fazê-lo

Um comentário:

Plas disse...

"Uma revelação me acomete quando deixo de girar como naqueles brinquedos de parques de diversão baratos, a cegueira não me impediu de constatar que eu sou a morsa, estirado de barriga para cima em algum lugar frio e luminoso do universo, não sou gordo, mas pressinto a gordura caindo pelos lados da rocha que me escora durante meu banho de sol, o qual me cega ainda que abra veementemente os olhos."

ummm, bom. Bom mesmo.