Às autoridades competentes e a quem possa vir a interessar,
Um método estrangeiro de tortura propugna que se encarcere o prisioneiro em uma sala onde não entre luz som ou calor. Isolado de qualquer influxo externo lhe ministrariam refeições a intervalos de tempo cada vez menores. Não percebendo por via biológica sua passagem o encarcerado passaria medí-lo por meio da únicareferênciade que dispõe: as refeições que toma. Crendo-as espaçadas por intervalos regulares e semelhantes aos da vida cotidiana, julgaria haver passado muitíssimo tempo por haverem passado muitíssimas refeições, quando na verdade o pontual controle destes intervalos permitiu que lhe dessem a impressão de haver passado anos preso, quando mal transcorreu uma semana. Alijado da noção de tempo seria fácil arrancar-lhe informações, tanto por seu desespero e fragilidade emocional quanto por um simples argumento que postularia haver a guerra acabado e com ela a necessidade de segredos entre os inimigos que teriam agora feito as pazes, chegado a um bom termo por via diplomática. Este segundo argumento é fraco e facilmente refutado por aqueles que nem no próprio país confiassem. Espiões duplos ou triplos não se veriam nada compelidos a entregar informações seja a quem assinava seu contra-cheque, se é que o sigilo lhe permitiria ter um, seja a quem o remunerava paralelamente. Parece ser que a grande estratégia divulgada pelos manuais de sobrevivência para eludir as intenções de torturadores tão especulativos quanto os que engendraram este prodígio filosófico seria infligir a si mesmo pequenos cortes e pelo tempo que demora a cicatrização, inváriavel por seguir ritmo biológico alheio a fatores exógenos, calcular o real intervalo entre refeições. Desbaratado o estrategema, bastaria ao auto-flagelador regular a própria alimentação podendo inclusive perder algum peso. Parece ser que o labirinto perfeito teria paredes forçosamente transparentes para privar o que tem a intenção de dele escapar da noção de espaço. A regra aqui nesse método tão engenhoso seria a mesma, com objetivo semelhante inclusive. Resta saber se o aplicaram corretamente alguma vez, e se sim, que resultados obtiveram-se.
Desponta, não obstante, a questão da aplicação prática de tal método. Não há dúvida de que os requisitos mínimos são um prisioneiro e uma sala que cumpra os critérios listados acima. Há, no entanto, questões não resolvidas. Quanto à qualidade da comida, subsiste a dúvida sobre se deve ser da melhor ou da pior. A melhor comida compeliria o cativo a comer mais e mais, sendo mais fácil empurrar-lhe comida a intervalos menores encurtando o processo o que como contra-partida acarretaria gastos imensos em itens supérfluos de alimentação - supõe-se ser desnecessário dizer que o prisioneiro deva ser encerrado isolado na cela; contato humano nenhum tornará o método mais eficaz - por outro lado ser a comida de baixa qualidade minaria a moral do preso fazendo-o contar tudo mais rápido. Os defensores desta vertente ignoram o fato de os soldados detentores de patentes mais rasas estarem amplamente acostumados à pior comida que o exército possa conseguir-lhes. Não obteriam, portanto confissões, argumentam os dissensores desta corrente que parece ser majoritária ignorando que este método é único e não serve para ser aplicado em soldados de baixa ou nenhuma patente. A escassez de salas tão bem isoladas quanto se requer, restringiria sua aplicação a casos especiais a serem julgados por uma comissão conjunta formada pela fina flor da corporação militar e da corporação sofista.
Quanto ao propalado método de contagem do tempo atrelada aos períodos de cicatrização da pele não há o que temer, a não ser que o preso seja masoquista, disposto a submeter-se a inúmeros cortes, o que providencialmente enfraqueceria mais ainda suas defesas psicológicas, não parece provável que algum preso recorra a este método. Não se lhes dá qualquer indicativo de qualquer coisa, se lhes ministra refeições apenas. Mesmo nos casos mais do que comprovados de capturados que se fazem passar por loucos é fácil coibir a utilização deste método fornecendo-lhes talheres, colheres preferencialmente, de plástico.
Não há, no entanto, - e muito especula-se a respeito na atual literatura - nos anais registro desta prática, conquanto a documentação acerca de outros métodos seja farta e conclusiva. Pode haver um medo subjacente, não necessariamente um apelo à moral e à humanidade no tratamento dos presos, mas um receio de que, se disseminada e incorporada à rotina tanto deste país quanto dos inimigos, esta prática podia levar à formação de um contingente bastante grande de pessoas menos aptas à vida comum que o pior dos mutilados. Nenhuma sequela física ou psicológica se equipararia do que a que aqui pode infligir-se. É, portanto, um medo quase transcendente da realidade física. Um medo da posta em prática de um método que só pode ajudar, que se não superado pode vir a solapar as bases da ordem e da moral desta nossa sociedade que desde sempre preza pelo exercício da razão e da soberania.
Um cidadão preocupado e consciente.
* Agradecimentos ao Thiago pelo apoio logístico.
Uma exposição – Thomas Farkas no IMS. Um disco – Lives Outgrown, Beth
Gibbons. Um livro de poemas – Blue Dream, Sabrinna Alento Mourão (Círculo
de Poemas, ...
2 comentários:
haha! :P
Hugo, quando meu cérebro volta a funcionar, te falo o que achei do texto.
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