domingo, 14 de fevereiro de 2010

Poema numa parede de prisão

"O nome do órfão era ismael
nome expulso quando começou a rabiscar nas paredes
do dormitório do orfanato frases que nunca aprendera a ler
sem saber o que era spray o que era tinta
só segurava firme ao ser posto na rua
o lápis de que a professora dali com sorte não daria pela falta
e se desse pela falta com sorte
não tomaria as ruas procurando o ladrãozinho
a esta altura já sem camisa
descalço com as bermudas rasgadas
há uma semana sem dormir
dormindo sob a proteção das árvores escassas
só preocupado em tatuar a cidade
e a retina dos passantes

sua primeira aparição pública foi ousada
na praça do palácio do governo municipal
recobriu um banco
'esses versos são os órgãos da cidade
arrancá-los é condená-la ao coma induzido'
nem os policiais que vieram revistar
encontrando-o nos arredores ainda inexperientes de si
depois da surra que aplicaram
entenderam a frase, mas era depredar patrimônio
e depredar patrimônio é depredar patrimônio

ninguém viu ismael
ninguém cheirou ou sentiu sua presença
ninguém sabia seu nome até começar a assinar
quando começaram a apagá-lo
com cuidado retocava cada verso pendurado
em lugares a que ninguém prestaria atenção
até esbarrar com as letras
claras como um anúncio
elas mesmas um anúncio

as putas que o conheciam de vista diziam que era ele
que escrevia nas portas de banheiros
seu local de trabalho
ele negava

'a nuvem observa o erro de cada um
e obriga o trânsito a serpentear
por rotas inesperadas'
era um poeta comum
supostamente só era melhor
publicitário que outros
estendia uma corda bamba entre prédios
para poetizar as marquises
aos poucos a atitude se disseminou
já não era a mesma coisa os versos eram piores
sabiam não ter jorrado do mesmo lápis
roubado da instituição correcional

os mendigos vagabundos andarilhos diziam
que era ele que escrevia nos para-choques de caminhão
paisagens da janela do seu local de trabalho
ele negava

o garoto não alcançava as janelas
um caixote de feira era o suporte dos versos
começaram a espionar
a querer saber por que um
'cuide da vida de suas palavras'
despertava tanta atenção no resto do mundo
era um vândalo disfarçado de quintana diziam
começava a suscitar algo
o acreditavam oposição

'se você me vê em todos os lugares é porque
também é onipresente' ele era trivial,
fruto do sistema
escritor apócrifo de si mesmo, se dizia
a propor opiniões de cima, minando as bases
do que o fazia desconfiar

o surpreenderam e o espancaram
numa armadilha em prol da ordem pública
ele que já não comia chegou a sentir mais fome
ele que já não precisava existir fora de sombras
foi fichado e fotografado
'a respiração no compasso de um erro
as mãos trêmulas deixam cair em silêncio um lápis
nesta calçada imunda inundada de tristezas'

a parede de sua cela é um mapa
desenhado não com o lápis
com a colher que outros usariam para marcar
os dias que faltam para sair dali
mapa que indica tanto veias entupidas
olhos esclerosados pernas amputadas
quanto a futilidade em tentar resumir
em palavras um amontoado de concreto

sua pele já se acostumou a escrever
versos em hematomas
na superfície do que foi o hematoma bonito da cidade"

2 comentários:

Plas disse...

Adoro poemas assim, dá para visualizar claramente cada cena.
Lindo.

Luci disse...

nem li deu priguica...
mas hein!
vc pega alguma literatura portuguesa esse semestre? to precisando! n tava afim d fazer sozinha, um amigo nerd seria o maximo!