Um velho canino escurecido
Ana Paula Maia
sentado numa espreguiçadeira na frente de casa vê passar
mesmo nas noites mais abafadas em que a brisa é uma sombra
de brisa uma lembrança de que o lugar é menos quente
com um ventilador ligado e o sol caindo e a rua deserta
vê um garoto passar devagar como no poema um gato
no telhado em frente tenta alcançar alguma coisa, na hora que ele
para de procurar vê o velho ali na espreguiçadeira com um cachimbo
à esquerda um vaso de planta vazio com moscas rondando
a janela aberta a luz acesa ilumina a porta
o garoto anda querendo que todo mundo o veja
leva flores com um pouco de terra caindo do talo
provavelmente roubadas mas ali nem há jardins só o cemitério
e as funerárias têm flores
gritar com o menino, chamá-lo e ele não responder é
a desculpa perfeita pra seguí-lo e ver se ele vai ao puteiro
ou tem mesmo uma namoradinha ou namoradinho pra quem levar
algo que talvez sejam gerânios ou talvez sejam rosas
ou talvez ele esteja descontente de ter que trabalhar
entregando coisas pros outros
mas é a hora de seguir e tentar saber
aplicar o questionário proustiano mesmo que ele não descubra
Qual seu defeito mais deplorável? Sou uma pessoa cheia de defeitos, e todos são deploráveis.
Qual defeito mais deplora nos outros? A intransigência, a prepotência, a intolerância.
Qual seu estado mental mais comum? Nos limites da idiotez, como quase todos os seres humanos.
Como gostaria de morrer?
e etc...
seriam prováveis perguntas, prováveis respostas
que talvez ele respondesse se o velho o abordasse
ao invés de parar na esquina sem fôlego
pedir um cigarro com preguiça de fumar e ver o muleque desaparecer lá longe
as flores como último rastro visível lá onde a esquina dobra
o velho voltar para casa seguindo as próprias pegadas
na contra-mão
tendo ensaiado contato e não conseguido tocar ele pensa que voltar é pouco
e deve ser pra quem já está ali mesmo
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