quando só três pessoas sabem e as outras acham que foi delírio
fechar as portas e fechar as janelas
a casa pede segredo guardado debaixo da cama
o quarto tem um baú com cartas lacradas: ninguém
quis saber de passado de passar o passado adiante
o lençol tem arabescos de veias abertas no justo contorno do corpo
que depositaram ali
quando só três pessoas,
[uma cozinheira, aquele menino e a louca
do quarto nos fundos]
sabem que não é hora de contar
as histórias de antes de dormir viraram sagas
que não terminam no sonho
o espelho rachado só mostra quem não são: os de antes morreram
só mostra o pó acumulado sobre a madeira
o menino correndo pelo quarto tentando se esconder sob o tapete
a cozinheira resmungando recusando espanar
- a vida é patrimônio de reacionários
não mostra a louca entre as torres de livros em seu quarto
trancada por dentro o dia inteiro fazendo barulho batendo
as portas dos armários onde dorme
o espelho mentiroso não reconhece
os rostos desfigurados
[pelo tempo
pelo incêndio dos livros enquanto dormiam]
ou quem mudou de opinião foi o espelho
ou foi quem contempla
um cigarro mal-humorado no canto da boca da cozinheira já foi
o sorriso escapou cabisbaixo assim que os dentes caíram
à loucura dos cabelos desalinhados o tempo somou versos rabiscados
na contra-capa amarelada dos romances
um pomar no quintal preocupou a princípio
na época em que mais gente vivia
pensando em cercas e limites
um outono sob as pálpebras nubladas
as folhas tombaram escorreram com os fios de água
dessa chuva que contra as janelas rabisca os mesmos versos
que ela reteve em si
a língua trancada esqueceram entre quatro paredes brancas
a casa não ecoa com a voz com os passos na madeira acumulado sob o pó
com a música antiga na cozinha: os lábios no ritmo do rádio
a língua trocada deixaram para os pássaros
que emudeceram entre flores: ipê serve
se não for o outono mais quente desde que eles vieram parar aqui
se as gavetas não rangerem
se os cômodos não estão sendo invadidos aos poucos pelas plantas mais ávidas
sobrou o cinza do céu tingindo o cinza das fotos, os restos nos cinzeiros
os tímpanos de antigamente se viciaram nos mesmos ruídos
as palmas do carteiro no portão e o vento na sala vazia
são os de sempre