quarta-feira, 26 de maio de 2010

as formigas zanzando sobre seu braço morto
são um rascunho
perceba que é um traçado
do que há pra saber sobre quem você quis ser
e sobre o outro que você acabou se tornando
mesmo que elas não tenham a princípio conseguido
abrir um caminho pra dentro do caixão
através do seu crânio
sei que elas acham um jeito, no fêmur, no cu
de ir entrando, chutando a porta do seu esôfago
escancarando sua laringe
as formigas vão ser as primeiras a colonizar
o subsolo do seu peito
e descobrir o que você escondeu aí dentro
a vida inteira achávamos que era oco
a vida inteira achamos que era um eco
a passeio
e agora o pontilhado preto das patinhas delas
não pede a licença que você também não pediu
farejando tateando lambendo deglutindo estraçalhando
cada migalha do que sobrou da sua ruína
se vísceras têm consistência de quê?
me diga você, que é só isso
amontoado sob madeira, ossos com dores
labirinto de túneis escavados na carne
por operárias
será que dá cócegas ter tudo isso por dentro
no que antes era espaço vazio
no sangue represado, contido, só pra ocasiões formais
agora banham agora bebem
você formigueiro enxame de vida alheia
esqueleto de naufrágio, elas mergulhadoras piratas
rapinam tudo, olhos e rins
com um trabalho minucioso que sempre te deu preguiça fazer
substituir o que há dentro com o que vem de fora
dói ou não?

se você viver no terceiro dia
sacuda bem as roupas e bata inseticida
porque sobrou nada você por dentro é um mapa
das rotas migratórias
insetos no lugar de sentidos
corpos ínfimos fazendo as vezes de sentimentos
cheiros em vez de órgãos
e por aí vai, sem voltar a reconstruir
sem que consiga ser o mesmo
sem que consiga trocar a máscara
o veneno que te corre nas veias já ruboriza ninguém

Um comentário:

Plas disse...

Porra, Hugo. Que imagem isso me deu. Ficou genial.