domingo, 15 de novembro de 2009

Há três horas ouviam Glenn Miller e repetiam pensamentos.

Mas o amor não compreende esses cálculos e esses raciocínios próprios da fraqueza humana
Cinco Minutos - José de Alencar


To die by your side is such a heavenly way to die
There's a light that never goes out - The Smiths

Ela frustrada com o que não conseguiram; ele ansioso, com medo de não conseguir repetir o que passaram e que valera a pena. Sentados num banco meio arruinado qualquer em algum lugar inominado porque desimportante discutem. Um prédio verde abacate ao fundo e cachoeiras tímidas de folhas e outros detritos vegetais. Não há perguntas de culpas e responsabilidades e os esforços são esparsos, falham em descrever direito o que têm. Os dois já estavam ligeiramente bêbados porque levavam ali uma tarde e um começo de noite. Nada já era o mesmo, ele mudara e ela continuara bem pouco como era. Apoiados no banco (da direita para a esquerda): chaves de casa, do carro, maço de cigarros e isqueiro, bolsa, papéis amarfanhados manchados de algo indefinível. E se afeição pode vir, e neste caso viera, assimétrica, a padronização imposta pela rotina roubara isso. Quando ela lançou o conteúdo do cálice de vinho ao rosto dele despertaram.
- Tudo que você fala tem cheiro de dissertação, não dá pra ser menos racional uma vez na vida?
Ele tira um lenço do bolso e tenta limpar a camisa antes impecavelmente posta para dentro da calça. Seca também os óculos e parte do rosto.
- E agora de onde veio isso, foi gratuito?
- O que mais me irrita em você é o que me agradava antes
- Antes quando?
- Na primeira vez que te vi naquele bar, você me chamou atenção porque era o único que prestava atenção a nada a não ser ao seu chope. Não estava ali por mulheres ou por fumaça ou por jogo
Na primeira vez que a vira naquele bar, quando ela sentara a seu lado usando a justificativa ancestral mais óbvia para se aproximar: pedir fogo, a convidara para dançar. Ele que não dançava, tinha topado ali aos poucos com uma cumplicidade que tinha certeza que romperia as amarras que o contigenciavam, que moldavam quem ele era, por isso dançara. E por isso, uma troca, ainda morna, mas já prevendo mais intensidade, de olhares, que não se cruzaram diretamente, a princípio, mas que depois permeou toda a noite, deu frutos.
Os rugidos das cigarras fazem com que ele entenda pouco do que ela está dizendo
- E como isso te permite jogar vinho na minha cara?
- Tudo em você me exaspera hoje
Culpar a quem se ela exasperava até a ela mesma hoje em dia? Não era lá tão difícil projetar frustrações num relacionamento dito disfuncional, quando na verdade restavam pouquíssimas coisas que a agradavam e ele não sabia se ainda era uma delas.
- Isso não te desculpa
- Não quero que me desculpe
- E quer o quê?
- E você quer o quê arrastando essa nossa relação como se ela já fosse moribunda? O problema é que a sua camisa é de um bege neutro demais, isso me irrita; demonstra sua compulsão por racionalizar tudo sem nunca chegar ao extremo de nada. É difícil acordar do seu lado e não pensar nas muitas manias a que você se submete para começar o dia
Um grupo adolescente passa com garrafas de dois litros de refrigerante e dá risadas do boné de um, ou do tênis. Comentam sobre as garotas que devem vir. Sobre a vodca que compraram. Sobre como a melhor tática com qualquer garota é sempre fazê-la beber mais que o homem. Um deles apanha uma cigarra em pleno ar e acha que arrancar-lhe asas vai fazê-la conter os bramidos. Todos riem dos contorcionismos do inseto menos um deles. Este sai sob as gargalhadas dos companheiros que prontamente o rotularam viadinho.
Ajeita os óculos ao lembrar que nunca mais vira um sorriso daqueles amplos que ela costumava empregar às vezes em situações especiais e o que era ainda mais especial, em situações corriqueiras.
- Você me conheceu assim e quer que eu mude?
- Não, só quero que você se arrisque mais, goste mais e odeie mais as coisas. Comprei um presente que espero que você goste. Mais ousado, a princípio pode destoar um pouco de você, mas quando se acostumar vai ficar lindo.
- O que é?
- Tenta adivinhar
- Me diz logo!
- Vai ficar sem saber então
- Tudo bem
Em um apartamento próximo, talvez naquele com grades cercando um terço do pilotis, começa a tocar Cartola. A música mais clichê na opinião dela, a mais bonita na opinião dele soa muito alta vinda de um apartamento. As rosas não falam.
- Como pelo visto você não vai mudar mesmo, eu vou tomar um café ali na entrequadra e depois a gente conversa mais
-Você está errada em achar que sou eu que devo mudar se na verdade os erros aqui são todos seus
- Que merda, é claro que não. Por que seriam?
- Todas as presunções feitas aqui se fundam numa premissa errada
- Fala direito, meu deus do céu
- Você vem acreditando que nenhum de nós mudou ao longo destes tempos e que o que te atraiu em mim agora não te agrada. A verdade é que os dois mudamos. Aprendemos muito sim um com o outro, mas não negue que algo aqui nos sufoca e eu diria que é a imobilidade, não das minhas manias, mas dos hábitos que consolidamos e chamamos de rotina. Não há lá muita saída a partir porque já construímos uma vida juntos, concorda?
- Não
- ...
- Você que não está se adaptando à situação e quer fugir alegando estar tolhido pela rotina
- Não quero fugir de nada, estou dizendo que não há muito a ser feito e a isto me resigno
- Espera um minuto aqui, vou no carro rapidinho
E passa cinco cigarros contemplando a semi-praça deserta, o poste intermitente, o transeunte apressado, preocupado com o avançado da hora, o campinho de areia para se jogar futebol transformado subrepticiamente em mato e as pessoas tremeluzindo à luz das janelas.
- Era presente de Natal, mas eu preciso que você se disponha agora a mudar, então adianto o presente
Uma caixa de papelão cor de vinho com filigranas douradas que ele pensa ser de charutos - leve demais para sê-lo - que quando aberta exala um perfume represado há muito tempo. Cheiro de flor amarga porque agradável, afável porque lilás. O interior branco do papelão contrasta com as listras escuras dos suspensórios.
- E aí? Gostou?
- Gostei muito, vai ser muito útil para segurar minhas calças
- Ironia não me apraz
- Eu sei
- E ainda assim continua fazendo
- Prometo que não fui irônico e que gostei do presente
- Que bom, então
- Gostei platonicamente, não sou pessoa de usar suspensórios
- Isso mesmo, quero fazer uma revolução com você
- Por que quer tanto me mudar? Pensa antes em me e nos entender
- Desisto
Expressão de ignorância no rosto dele e de raiva súbita no rosto dela.
- Agora vou mesmo comprar café ali na entrequadra, me espera aqui. Quer alguma coisa?
- Quero nada, não
Ela frustrada aderna para sul, rumo à satisfação de um vício que não era mais ele; ele intrigado com as motivações para o presente de que não gostara aderna para leste, para tomar um apartamento inédito e se livrar do que o prende agora. Cada um egoísta no seu modo de lidar com outro, cuja afeição não se esvaíra por completo, mas que a erosão da convivência tornara quase insuportável compartilhar.

Um comentário:

Plas disse...

-Gostei platonicamente, não sou pessoa de usar suspensórios.

Eu ri... e pensei no Sobral.