segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Mundo perdido

Quando encontrei Juan estirado no chão de seu apartamento, havia sobre a mesa da cozinha uma carta incompleta ainda, que transcrevo aqui para que possam entender tudo sem difamá-lo. Uma parte do escrito está manchada e ilegível, mas isso não apaga a vontade de reabilitar a memória do meu amigo. Publico o que consegui entender.


" Juan Gelman, Barcelona 19/03


Me pergunto por que insistir em continuar a viver num mundo que torno mais sórdido a cada minuto em que piso nele. Mas a decisão já é tomada. Sou fraco e incapaz de mudar as coisas para melhor, esta decisão talvez seja o único ato de vontade próprio que concluí na vida. Aceitar o que me foi vendido, com todos os sentimentalismos eufêmicos, só me trouxe a inércia de saber que posso nada . Não posso, nunca pude, ao menos querer ser nada, mas, ao contrário de Pessoa, estou vazio de sonhos. Cada luta foi vã, perdida de antemão; amor, dinheiro, sexo, câncer, poder, poesia, álcool e nicotina, são substitutos. Nomes falhos com os quais é impossível tapar o vazio em cada existência. E se ainda há quem se pergunte por que é essa a época em que o maior número de pessoas se mata, a resposta vem fácil. É simples, é a época mais feliz do ano, de uma forma artificial - uma forma que escancara a falta de preocupação do consumismo com o dilaceramento das personalidades. É mais fácil e estimulante acabar com a própria vida agora porque percebemos o quanto nos falta para atingir, em qualquer campo, uma plenitude que é exigida e nunca alcançaremos. Por isso a opção pelo caminho mais egoísta. Não há dor que sufoca e aprisiona, apenas uma escolha racional, uma opção por não partilhar mais dos ideais falidos que nos obrigam a comprar a cada dia...

P.S. 1
P.S 2: Minhas únicas testemunhas são aqueles que nunca falharam comigo. Tom Waits, Lambrusco, maço sempre meio vazio de Marlboros vermelhos e quatrocentos e oitenta e sete pílulas de ansiolíticos."

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