domingo, 6 de dezembro de 2009

naufrágio longe da costa, muitas pedras invisíveis










, fiz uma besteira outro dia com o fuzil. 
Quem ia saber que você também sofre do mal-caduco?
fiódor mikhailovich dostoiévski

o ventilador quebrou. a noite me sufoca sob um teto de nuvens tornadas brancas pelos postes excessivos. a prova disso são estas moscas em carrossel ao redor da luminária evocando o sorriso falso que nenhum dinheiro de que dispus pôde comprar. o olho vermelho da cafeteira está me censurando. é hora de parar. é logo desmentido pelo cinzeiro cheio. espere o fim dos sons da noite para ir. não a esqueci. também não gosto menos dela. é como fumar sabe-se que é prejudicial e que é uma obsessão que vale a pena manter. deixo as decisões para o momento em que baterem à porta. a retribuição dela ao quero te ver deitada de costas pra mim com a bunda empinadinha foi um sorriso curto seguido de uísque do copo dela em meu rosto. eu achava que espelhos em tudo. estofados de oncinha. água de colônia imitando perfume. trinta reais de consumação. me davam o direito de falar o que eu quisesse para qualquer um. tudo um rito de iniciação que permitiu começarmos a conversar. depois eu saberia que sob uma vigilância distante mas atenta. o que mais atraía eram os dentes brancos. uma assimetria nos de cima, um um pouco maior. dava vontade de lambê-los. falei de nerval e latréamont. que ela não conhecia. enquanto acariciava meu rosto olhava para os lados. nunca nos olhos. não tínhamos trocado olhares nem nada. o vizinho à esquerda martela nossa parede contígua desde que eu cheguei em casa. a luminária começou a piscar. gato malhado se esgueira entre dois prédios desviando das primeiras gotas molhadas. às vezes acho que o que me fez gostar de vez foi ela nunca receber antes. uma política de satisfação garantida. o pulso hoje do martelo em meus tímpanos é o pulso ontem dela arfante sob mim suado. em silêncio. sequer parecia haver esforço. tudo deslizava. os joelhos dela. ora em meus ombros ora em meus rins. nos olhos fechados carregados de pintura envelhecida um quê de recusa. quase no final ela arranha minhas costas. sem fazer qualquer som ainda. hoje estou realmente sem dinheiro. faz uma promoção. a rua estridente do outro lado da ligação entrecorta o que quero dizer. nem doida. tá querendo me passar a perna seu viado. o direito de pernada é uma reminiscência medieval. você sabe o que é. cala a boca. financia um pacote de horas pra mim. só aceito à vista e em dinheiro. você sabe. eu não tinha seu telefone. se é que ela tinha um. conversas por orelhão. o dia em que você se apaixonar por mim você deixa de me cobrar e eu beijarei sua boca. você e eu sabemos que é mais fácil acontecer o contrário. qunado ela desligou na minha cara fiquei com o cigarro em uma mão. o telefone em outra. pensando na tradução que estava atrasada duas semanas. a fumaça que trago é mais limpa do que  muito do que ela me deu. logo depois de receber o adiantamento pela série sobre o zé do beco comprei um vinho. mandei flores e um táxi ir buscá-la. desci para comprar velas. quando voltei ela estava sentada na escada do andar esperando. levantou-se e vi. maquiagem borrada escorrendo pelos cantos do rosto. pupilas gigantes. saia rasgada com manchas úmidas. o que mais me intrigou foi o cabelo. sempre solto. em coque. fiz com que entrasse. embora ele estivesse em meu colo a vontade era de afagar seus cabelos e perguntar algo. em silêncio dei banho. café. camisa que depois ela vendeu e entregou o dinheiro para ele. foi o que disseram. ela fingiu a própria morte na época em que adotei a estratégia de só revelar que não tinha dinheiro após o terceiro. fingido ou não. orgasmo dela ou o primeiro meu. o que viesse antes. o zelador foi convencido por ela a dizer que fora atropelada. as colegas de trabalho não atendiam o orelhão. o pedestre que o fazia não sabia reconhecê-la só pelo nome ou pela descrição. mereci um tapa e um abraço ao pedir uma cerveja. agora você aprende a não me dar o calote. comecei a ligar todos os dias. sem abandonar a estratégia. ele veio me visitar. arrombou a porta. quebrou o meu nariz e o telefone, ao avançar para a máquina de escrever o empurrei. o vidro trincou e a moldura amassou no ponto em que ele tentou se agarrar. já caindo. a ligação orelhão orelhão não pôde ser completada. atendeu um corretor de seguros querendo comprar ouro. tampouco a encontrei nas calçadas de sempre. nos bares de sempre. tanto é que acabei no primeiro. no do estofado de oncinha e espelho nas paredes. seria mais fácil achar que ela nunca viu a carta escrita num guardanapo. carta mais pragmática que romântica procurando. implorando por um lugar. para ir. para deixar. para incinerar. para esquecer para concretizar alguma coisa. em seis palavras pedi. escrevi em pé apoiado no balcão e a dei ao garçom. que achava que entendia a história toda por causa da variação do grau etílico dos pedidos. da margarita jovial ao uísque de milho para apagar ausências. fazendo com que prometesse que ia entregar. esperou eu ficar razoavelmente fora de mim para anunciar o que esteve esperando a noite inteira para anunciar. é hora de fechar. encerre sua conta. e todos os esforços são em vão porque ela se matou ao saber da morte dele. apago o cigarro arremessando-o por cima do ombro. a garoa. pó fino que arde na minha pele. me fustiga. não tenho pressa. o nariz retém memória da dor. vou contemplando a rua estática. mal iluminada. gatos copulando dentro de latas de lixo que amplificam seus ruídos. presenças intuídas tremeluzem. se esgueirando entre prédios. fugiam da água que crescia. o passante eventual me aborda visivelmente alterado. orbita outras coisas. olha em meus olhos. agarra meus ombros e os sacode gritando. ele a matou por ciúmes de você. talvez tenha sido a hora de começar a ficar preocupado. já estava ensopado procurando a chave no casaco da porta do prédio que dá para a rua. sob a chuva já muito aumentada. não sei o que o zelador estaria fazendo àquela hora acordado. ele abriu a porta por dentro e quase me tranquilizou. ela fugiu ao saber o que você fez. esta poltrona é realmente boa. abstraída das minhas perguntas de quanto de verdade há em tudo isso. nas fugas. nas colisões. nas unhas. nos gestos. comandados ou não por outros.

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