quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A bíblia resumida

Saio do bar sem ter como voltar para casa
segundo uns eu não devia fazer
sair sem saber

uma amiga me perguntou quantas melhores amigas eu tenho
e na sua frente
o que eu respondo numa ocasião dessa?
se não te considero uma amiga comum
o que te torna aos meus olhos inclassificável
não queria que o que digo soasse falso depois de ter bebido
ver seu sorriso, que você virtuosisticamente varia,
é sempre bom
tem o contraído que presta atenção na conversa
tem o que se escancara quando você vê alguém
que há muito não via
tem o sem graça quando eu tento olhar nos seus olhos
prestar toda a atenção te elogiar
e puxar assunto ao mesmo tempo e falho

ler a carta também é sempre bom
mas você ali
supera tudo
a presença com que eu contava
mas que ainda assim surpreende
cito de memória algo
a incapacidade de apreender a peculiaridade um do outro

quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Se o dia amanheceu bonito
devem ter regado com a noite
chovendo lágrimas sem orvalho
os canteiros de sentidos que agora
florescem como girassóis procurando
os grãos de pólen da luz para germinar

se o dia amanheceu feio refletido em escritos
cinzentos de nuvens trazidos
calmos sem relâmpagos como o dia
a que almejei
o vejo assim mesmo
borrado
água demais
teto branco baixo demais
faróis que ofuscam mais que o sol que substituem
a própria poesia sai muito densa
palavrosa demais pretendendo o que não devia

os postes não são duchas tão boas
para quem volta para casa tarde
ou prefere se abrigar sob os bancos

segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

Mundo perdido

Quando encontrei Juan estirado no chão de seu apartamento, havia sobre a mesa da cozinha uma carta incompleta ainda, que transcrevo aqui para que possam entender tudo sem difamá-lo. Uma parte do escrito está manchada e ilegível, mas isso não apaga a vontade de reabilitar a memória do meu amigo. Publico o que consegui entender.


" Juan Gelman, Barcelona 19/03


Me pergunto por que insistir em continuar a viver num mundo que torno mais sórdido a cada minuto em que piso nele. Mas a decisão já é tomada. Sou fraco e incapaz de mudar as coisas para melhor, esta decisão talvez seja o único ato de vontade próprio que concluí na vida. Aceitar o que me foi vendido, com todos os sentimentalismos eufêmicos, só me trouxe a inércia de saber que posso nada . Não posso, nunca pude, ao menos querer ser nada, mas, ao contrário de Pessoa, estou vazio de sonhos. Cada luta foi vã, perdida de antemão; amor, dinheiro, sexo, câncer, poder, poesia, álcool e nicotina, são substitutos. Nomes falhos com os quais é impossível tapar o vazio em cada existência. E se ainda há quem se pergunte por que é essa a época em que o maior número de pessoas se mata, a resposta vem fácil. É simples, é a época mais feliz do ano, de uma forma artificial - uma forma que escancara a falta de preocupação do consumismo com o dilaceramento das personalidades. É mais fácil e estimulante acabar com a própria vida agora porque percebemos o quanto nos falta para atingir, em qualquer campo, uma plenitude que é exigida e nunca alcançaremos. Por isso a opção pelo caminho mais egoísta. Não há dor que sufoca e aprisiona, apenas uma escolha racional, uma opção por não partilhar mais dos ideais falidos que nos obrigam a comprar a cada dia...

P.S. 1
P.S 2: Minhas únicas testemunhas são aqueles que nunca falharam comigo. Tom Waits, Lambrusco, maço sempre meio vazio de Marlboros vermelhos e quatrocentos e oitenta e sete pílulas de ansiolíticos."

Veloz

Este poema é breve porque sei
que me espera nada

chaleiras apitam à passagem dos fios
cortados do que fui
com lágrimas de vapor prenunciam minha urgência
de marionete
em articular
por impostação fazer crer que sou
que penso escrevo e logo insisto

a luz do palco me cega
mudo não comunico com o zunido surdo
do que implora para ser escrito
descrito
transcrito
proscrito
subscrito
Ela estava pensativa desde que o computador pifara. Não tinha sido uma boa boa idéia jogar cerveja no processador para fazê-lo funcionar mais rápido graças a uns agrados. Queria fazer a pergunta derradeira, jogar na mão de outra pessoa aquela escolha que sabia não haver porque a resposta era óbvia demais. Continuo insisto e permaneço ou com o rabo entre as pernas conservo lembranças do que foi bom enquanto intenso?

Esperando lá, na chuva. Não poderiam ter me esperado dentro da lanchonete?

domingo, 27 de dezembro de 2009

À anfitriã

Poema escrito na magrudada na casa da Júlia às 05:32
Palavras na calada
da noite dos tempos do dia
ecoam mas não rebatem
porque ficam
porque atingem e seguem caminho
entre abismos de desprezo
indiferença e acolhida

na multidão a não esqueço
pairando sobre o que vão dizendo

palavras na calçada
correm dos postes
recorrem a cigarros que iluminam

pensamentos erráticos
e conclusões preciosas que atiro ao ar
não conseguindo segurar
nos meus dedos gastos

tocar por trás de um muro
que quero demolir
na ignorância
cinzas de não saber como agir

minha consciência é a de esperar
agir deixo para os pássaros que em gaiolas
observam de longe

sábado, 26 de dezembro de 2009

Haicai-encontrado num bolso

Espero para
te dizer o que fui ontem
mentindo agora

Haicai-ornitológico

Pássaros em fios
invisíveis batem asas
choques no infinito

Haicai-pressa

O poste já foi
e eu não vi seu som ardido
Noite interna minha

Sem dúvidas

Ex-você na ponta dos dedos
Porque agora quando sorri
Sorri de esguelha

Spleen/saudade menos blasé

Me acomete a tristeza indescifrável
como a tosse sem causa
e o alfabeto asteca

as crateras na lua dizem menos
do que já disseram
refletem o teu olhar mais torto

A norma oculta

Amanhã você vem
e eu fico sem sorriso
meu
teu
nosso que não houve
ninguém soube tomar seu lugar
o lugar de mãos de pianista que acenam
Ao longe
De longe
Pra longe
ou vou ou fico para parar de pensar
ou parar para pensar
nas culpas escondidas a um canto
que quero exterminar
antes que você chegue
antes que as luzes se apaguem e eu me perca de novo
e elas se espalhem por aí
tenho que ser rápido
amanhã você vem

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

A caverna

Cabeças rolantes como os queijos pelas colinas
sem ter dependido defendido
maços pelos campos de guilhotinas em flor
de espelhos e pétalas de suspiros

nuvens em formação atacam
nuvens
cactos refletidos em um deserto
não mais silencioso
suspiram
expiram
exalam

como roupas postas para secar
à espera do vento que resolva

sobrevivi

Os malabarismos falharam e me sinto bem
por ter tido todas as chances roubadas
de mentir e disfarçar

nenhuma estátua chora mais
ou sangra
todas já cansaram de inventar motivos
para ficar tristes

nenhuma pena vale mais
o que valeu
quando quis saber por quês
em velas meio apagadas
e maços meio comidos

um pássaro me veio dizer que sim
que estive errado e era tudo drama

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Poesia gelmânica

Tenho uma maçã para oferecer e só
meio enferrujada, ainda está boa
parece que as asas dela estão emperradas
basta espanar um pouco esse pó

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Haicai-autoescola 5

pus o que me aflige
numa carta que perdi
olhando em seus olhos

One-track mind

o silêncio devora as palavras
nas entranhas claras da noite
iluminada por postes caducos

hesitante aprisiona
apreensivo digere
dita as regras do esquecimento
sempre indeciso
sempre adiado

o silêncio apaga a silhueta dos atos
um telefone que toca na madrugada
e que ninguém lembra de atender
os contornos do som indo longe
miragem na distância que os dedos não alcançam

liberta do que prende aqui
substituindo o vivido
por prótese
a que me resignei
quando me amputaram as palavras

recolhe os pedaços que caíram
e junta fora de ordem

alinha os escombros que te formam
antes que venham ver

fazedor de quimeras que como
nuvens rumam para o sul
de que não lembras mais

absortas obcecadas em procurar
as pegadas do que foi apagado,
uma mancha nas lentes de uns óculos
não se nota, se sabe

o silêncio é uma estátua em chamas
no escuro do que foi dito

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

digitar as runas do que sinto em teu rosto
de monstro mitológico
inexpugnável como aquelas muralhas porque
ininteligível despreza a tudo e todos
quero seu corpo dobrado em cólica gritando
e em outros momentos também

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Feito de cinzas

vou desbravar a geografia dos seus lábios
que, impassíveis como um pôr do sol
a que assisti refletir o que me cega em
seu olhar,
desabrocham em rosas irônicas
pavimentando meu caminho áspero

segurar suas mãos é sentir o mundo sob penas
a correr pelas minhas veias
exército delas
macias diminutas e vermelhas como o seu cabelo
sempre me fazem esquecer todo o resto

acariciar teu rosto de estátua que desdenha
rosto cálido e seus rios ainda não conheço
é saber que o erro está ao dobrar da esquina
sendo que a única solução é o maior deles,
gritar para que todos saibam que te quero

em meus braços
em meu papel
em cada ato desgovernado
em cada gole novo de vinho
em cada cigarro mal apagado na noite
cujos passos perco de mim caindo

subir no poste mais alto e agir
como o marujo imprudente,
avistar a terra não tão firme assim

te escrevo como quem desenha
de memória
o mapa de um labirinto recém aprendido
pelas pontas dos dedos
respirando fundo e sem calma

domingo, 20 de dezembro de 2009

catadores de pedrinhas, às margens dos rios, à espreita

Quero uma palavra
mas não qualquer uma porque já conheço muitas
evito que seja muito sorridente
evito que tenha um olhar que traga à tona milhares
de perguntas
uma palavra sensível que me enraiveça
por não traduzir o que sinto
e que me tome todo errado
entregando uns significados imprevistos
a quem passa e observa

quero uma palavra pra mim
que não se deteriore depois de
três meses muito intensos
uma que mantenha o significado pra sempre
mas que seja tão voraz quanto e tão escritora quanto
qualquer outra
que saiba que à luz da lua e à luz do abandono
todos os poemas foram tatuados

quero uma palavra encharcada em álcool
embalsamada por mãos antigas que entendam
que ela precisa voltar inteira
depois de tudo o que farei com ela

Elegia soviética

Para Dona Nídia de Miranda in memoriam

andropov é o poder ao povo
sobre as máquinas e o dinheiro
acumulado nas mãos de poucos
não mais

brejnev distensão e batalha
mortal rindo de watergate
arrecada e trabalha
para todos

kruschev não continuísta
renovador
quase anti-trabalhista
ri do vietnam do sul

tchernenko estertor agônico
canto do cisne do que funcionou
a todo vapor, irônico
seu sucessor

gorbachev abre as pernas de tudo
para um capital doentio
numa virada absurda
de reformas inconsequentes

stalin máquina de guerra
não sabe o que são estatísticas
e os mortos que enterra
contribuíram

lênin fundador de  fábricas
e de sociedades paradisíacas
derrama última lágrima
por sua entusiasta

sábado, 19 de dezembro de 2009

Haicai-autoescola 4

Sei de nada quero
tudo menos escolher
caminhos não líquidos

Haicai-autoescola 3

Tá, os seus são únicos
Mas na falta deles, bastam
Tá, é mentira, não bastam

Haicai-autoescola 2

Não se veste como
é menos branca mas os
olhos são iguais

Haicai-autoescola

ela lembra você
irônico demais
mas pura verdade

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Pixies throughout the place.

Assustado desprevenido
recolho escombros de mim so
nolento

pedaços do que fui
tentando esquecer o que

sou o que fiz

cato todo tipo de restos
que caem do meu corpo
à medida que morro

já procuro nada
está tudo perdido
soterrado o corpo vejo a mão
que pede ajuda por entre
escombros

outro dia mexendo uns livros
 velhos
achei duas notas fiscais daquel
es tempos
de cafés na rua nove
e lembrei do frio que me
perpassa e desmorona
retive seu sorriso de então, acredita?

daquela madrugada em que choveu conosco lá

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Cada angústia é gaiola de um pássaro no peito
zune e se debate
anseia, mas insatisfeito
assiste impassível
ao desfecho que não controla

Pássaro acorrentado ao que já
foi
de asas cortadas
e sorrisos perdidos
rememora papéis
registros escondidos de
cumplicidade não almejada mas atingida

Pássaro ferido de asas abertas esperando
sedento observa
como a comida vem muito aos poucos
naquelas gaiolas que não são prisão em miniatura
e sim o lugar que buscara
a clausura divertia um pouco
até porque dava a impressão
de que poderia sair

Cada cigarro é uma chave falsa
que abre a porta da angústia justo o tempo suficiente
para o pássaro achar que se livrou

cada poste que se apaga,
centelha que morre na rua instável fumacenta
é uma esperança a mais para quem
vê apenas os reflexos da lua

cada máscara desta cela já conheço
de já ter voado ao redor como mosca
atrás da saída

Tragédia moderna

triturado pelo dia em abandono
penso em você
no desdém que nega ter
nos olhos longes guiam menos
meus passos meus gestos
minha boca é raiva e a sua
não esconde mais um sorriso

torturada pelo dia
a folha que cai é o que deixei para trás
o que ainda quero que sejamos, mas
me abandona aos poucos
errei sem volta.
cansa ter que dirigir meu pensamento
a uma escolha
dirigir o que escrevo à que me acusa
de ser cego pra longe

o que há perto, é fato, agrada mais mesmo
tudo que se afasta me relega
ao cansaço do esquecimento que não quero

Diatribe

o que foi que você disse
solto por aí
sentados num lugar
que nunca entendi
?

terça-feira, 15 de dezembro de 2009

El rulfo 2

Árvores suspiram porque falham em me fazer
parar de fumar para parar de pensar em esquecer, Luísa
como se eu pudesse desviar do que me acerta
e me atordoa
rotina eu quis e a que tive
a que tenho me faz escolher entre lembrar
e deslembrar, pedir e desistir
ou desentender despedir e continuar
para seguir num caminho que torno mais dramático a cada passo
você lembrou o tema da primeira poesia minha que leu
e isso não me tira todas as reflexões desanimadas

mapas: rascunhos de topografia

uma praça da cidade besta de drummond
dois sentados e um sabiá
num balé desconcertado de palavras
sem concentração mantiveram pouco
do que prometeram sem esforço conservar
o que sobrou para agora além de papéis?
algo de intocável
algo de desdenhoso
uma ruela da cidade imaginária de bandeira
esconde com seus postes intermitentes
umas razões
de ser de e de deixar de ser
que dão voltas a trezentas revoluções por minuto
mosca kamikaze vertiginosa vorticista

recuperar porque prometi quinhentas folhas
prometeu-se muitas coisas
e você diz que eu fiquei devendo

segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

fluxo-anti

Sentada no ônibus que passa vai uma paisagem
que grávida do que deixo para trás
pergunta se o aborto é realmente necessário

o pedinte me oferece pastilhas para a garganta
e não tendo o que procuro
vai

o pedinte quer me vender pílulas para a memória
em versão normal e milagrosa
já sai do bueiro mostrando-as

mas eu não quero lembrar
e eu não quero esquecer
quero substituir o que aconteceu

uma prótese para o que pretendo amputar em mim

Français très facile

Nem sempre esperei
A quis e consegui
Por segundos achei que consegui

Ciclo findo

uma pedra esmaga o meu melhor
suspenso intermitente
cuja morte é só mais um tipo de existência
incerta
de que não fujo e que não procuro

domingo, 13 de dezembro de 2009

Sexta ali quase perdida

tinha tempo que eu não me divertia assim
sem pretender nada
nem no sentido português
nem no sentido inglês da palavra
pensando em quase nada talvez em porque
das pessoas que saem do nada
conversamos e conversamos como se houvesse
um amanhã que não preocupava
eu cansado do mundo e você cansada do trabalho
fingindo que não queria ir a festa alguma
achando que me engana com essa carinha
brasília é totalmente diferente à noite à luz
da igrejinha e do cheiro de cachorroquente
houve beatles e o disco deles seu favorito é o meu
também ouvimos algo do que outro disse
e a noite
não se perdeu por um daqueles imprevistos
tão comuns
imagina só, parada de metrô do final da asa sul
de madrugada pode ser mortal às vezes
ou não, depende

sei que valeu a pena perder a festa
tinha tempo que não falávamos e nos víamos assim

sábado, 12 de dezembro de 2009

a entrada é um vão escuro com uma escada
e a promessa paira no ar como a garoa
distorcida pela luz dos postes intermitentes
o homem do outro lado da rua observa
a lua que observa o movimento dos que entram porque
se não gostarem deles lá dentro já não saem
bem pouco foi mantido depois daquele incêndio
só digo que os conservadores foram a favor de não reformar
e fazer tudo entre as ruínas e as cinzas mesmo
ganhou uma outra ala, a renovadora, que reconstituiu
no mínimo dos detalhes a lamparina com insetos
e a chapeleira em madeira escura no saguão
de luzes parcas como os primeiros frequentadores

um cheiro é peculiar se ninguém sabe de onde veio
e assim são as memórias que não vividas
afloram desabrochando nos dedos de cada um ao menor
toque como rosas tímidas esperando o primeiro movimento do namorado
memórias sem grau de parentesco com peso do que
já houve

tentar esquecer é evocar novas vivências ainda que não
próprias

a rua em frente é deserta habitada pela lua
pelo astrônomo e pelo cachorro
carros não podem parar perto do portão enferrujado
corroído pela passagem de tanto o que esconder
e pouco que aprender nunca lugar
a que ninguém vai para isso mesmo o motivo
de atravessar uma rua um pouco longa em semipenunbra
e cruzar uma passagem que exala

mendigo eventual passa com sua carroça é impedido de seguir
por aqueles que sabem que desejam esquecer
tomando para si o que foi de outros
a memória falha em roubar, num alzheimer contrito
arrependido dos pecados por isso me contento
com lembrar só o que tenho
e com escrever o que não vivi

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

No one knows it's gone

aquele lugar era meu refúgio
árvores e cigarras e as coisas eram verdes
e puras
o passado - talvez porque idílico - é sempre melhor
e banquinhos e bonbons já não há
só ruínas de mim pedaços tortos jogados pelos cantos
eu fumava bem menos e tomava sorvete
porque sim
uma ou outra tarde sem bigode que
ainda tinha caminhos a ser percorridos
e poemas a ser escritos na pele vertiginosa
de acontecimentos em profusão
tudo foi fato e tudo foi novo e tudo foi puro antes da ferrugem
cobrir com poeira fina mas impregnada
o que hoje é um ferrovelho
parquedediversões de umas lembranças
curiosas
sem ninguém pra espanar
lembranças com órbitas vazias abrigo de vermes
que singram a carne não para corrompê-la
mas para descobrir o que houve
e de alguma forma preservar não sei pra quê
destroços de civilizações antigas que cultivaram
como tabuletas astecas brotando do chão
é isso que esses vermes procuram mas falharão em encontrar
poesia é estes vermes que não se sabe se mais ou
menos moribundos do que o que escavam
do que gostei está estirado
jaz em algum lugar esperando enterro digno
sobrou a estátua sem braços morta no meio de um jardim

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

deitado num banco acendo um cigarro olhando as nuvens
de bigode alemão e de nave espacial
sem dinheiro não quero voltar a pé
estou esperando algo acontecer
e não sinto esse cheiro no vento
nem de carona nem de ônibus
o conhaque está mais caro
os suspiros estão mais caros
e os sorrisos e os gestos nada mais é de graça
ou pelo menos tudo hoje requer dinheiro para ser feito
só quero dormir e esquecer das pernas
que ela já não se incomodava em fechar na minha presença
do cabelo fino perto da nuca e dos cigarros
devorados
abre a boca e fecha os olhos que aqueles mexicanos
estão nos encarando
já te disse pra não usar esse salto que ele me machuca
nem é porque você fica mais alta que eu
os pés mais suaves para a alma mais suja
talvez mais suja que a minha
a cerveja era tão amarga quanto hoje
mas era mais divertido sair sem pagar ou embebedar
o dono e seu cachorro antes de fazê-lo
quando começou a chover tudo o que você disse foi verdade
porque era mentira pela qual lutamos
grita comigo se você não tiver ido embora
e vamos voltar a fazer poesia
com a caneta e com os ossos
sem atrasos pra agora se você ainda estiver por aqui
e ainda quiser algo disso
e algo mais que ficar deitado nos bancos sem retocar a
maquiagem e os olhos seus que presumo borrados agora
me fale de sade que eu te falo de cortázar
antes do fim de um mundo que vi pela sombra
que era ideal e que não quero que tenha acabo
à força de minhas elocubrações
à força dos erros obsessivamente repetidos que revolvo
deitado num banco fumando um cigarro olhando a lua

Gaivotas são ilhas solidificadas no meio do ar

Está frio e abafado aqui
O tipo de clima mais estranho
Um tanto claustrofóbico
Como úlceras que se abrem
No ar e aprisionam

há espera e desespera
e vontade de solução ou
de manter o que está
noivas contendo a vontade de correr do altar
para os braços do marido
para os braços do amante
para os braços do pai e dos bichinhos
de pelúcia

dedos se abrem e não encostam
hesitam em tomar a decisão
e isso já é fazê-lo
na falta de habilidade para abrir um
sutiã qualquer
retirar os dedos é com certeza decidir

cheira a fritura aqui e isso não
foi deliberado
mas suportar ou não sim
dentre alguns caminhos vê-se um
percorre-se um desdenha-se um
em detrimento de todos os outros
nas costas de camelos
deste deserto anoitecido
em que estrelas e escolhas caem
como meteoritos maduros

cada centímetro avançado
é um que aumenta a distância
entre o que se é e o que se quer
ser e querer

eu vejo todos e não opto
inapto

Santorini

a manhã trouxe frustração
sem saber o que queria
nada funcionou e os postes desmentem
todas as intenções e algumas chamadas perdidas
amanhã será melhor se
deixarmos na estrada o que
nos trouxe em busca do novo que perdemos
esperarei três horas e meia e
nada mais
para que surja em algum lugar o que
quero só por não conseguir
entender por não conseguir tocar
e que não creio que me fuja
mas tampouco creio que se aproxime
a mim porque está indiferente ao saber que
gosto

venho pensando em parar de escrever
essa ânsia dói
não doerá mais ou menos se firo o papel
mas deixarei de precisar lidar com coisas

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Fell through the ice

nenhum dramaturgo conseguiu
por expressões e feitos
caretas pantominas e frases de efeito
traduzir o cerne de cada coisa
sem que a falsidade gritasse

é tudo representação

tudo é palavra e nenhuma me serve
quando um tipo de agulha me rasga
procurando em vão que eu resista
que eu escape
de uma dor que em ondas simples
e por isso mais demolidoras derrubam
do nada o tudo

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Tangled up in blue

Nem eu poderia imaginar que hoje me despejariam de meu apartamento. Eu gostava bastante dele até porque não era lá muito fácil encontrar apartamentos com banheiro naquele bairro que era o único em que meu dinheiro me permitia morar. Não sei se é bem despejo quando dá pra ver uma luz por debaixo da porta e barulhos. Meu colchão estava escorado na porta e era tudo. Sem aviso e sem resposta quando bati. A fechadura tinham trocado já. Como eu estava sem ter aonde ir decidi sentar na calçada e esperar até alguma coisa acontecer. Pelo menos não tinham me trancado fora da minha carteira de cigarros. Dinheiro era sempre pra mim uma doce ilusão mesmo, o problema era onde dormir. A vantagem era não precisar mais pagar os aluguéis atrasados. Decidi arrombar a porta e por isso subo as escadas correndo, pra pegar impulso.

the blues is dead and mark lanegan is a fag

aprendi de um jeito a andar
um jeito que ninguém usa mais
em que o chapéu torto e o cigarro
no canto da boca
não são sinal de irreverência
nem a jaqueta puída e a calça gasta
com o bloco de notas sempre
em mãos de ornitólogo insincero

manequim de magritte que vê o ovo
e pinta-o já gestado
com asas para desenhar a outros
tipos de ciclo no meu bloco

acende-me a estrela da manhã
que a sua janela escura me impede
de ver teu rosto

colhe a luz entre os teus dedos longos
aprisiona-a num movimento de sufocar pássaro
e prender cigarra

acende-me a estrela da manhã
porque aprendi de um jeito a jogar
pedrinhas te acertando
até que você acorde
sem querer saber que horas são

colhe a luz para que o brilho em teu rosto
resida
acomode-se
e sempre se saiba que dali não escapas

o rosto é uma mão que afaga e repele
com unhas mais afiadas que as de costume
aprisiona pois o que ainda não cativo
jaz estirado a um sol que não o teu

domingo, 6 de dezembro de 2009

naufrágio longe da costa, muitas pedras invisíveis










, fiz uma besteira outro dia com o fuzil. 
Quem ia saber que você também sofre do mal-caduco?
fiódor mikhailovich dostoiévski

o ventilador quebrou. a noite me sufoca sob um teto de nuvens tornadas brancas pelos postes excessivos. a prova disso são estas moscas em carrossel ao redor da luminária evocando o sorriso falso que nenhum dinheiro de que dispus pôde comprar. o olho vermelho da cafeteira está me censurando. é hora de parar. é logo desmentido pelo cinzeiro cheio. espere o fim dos sons da noite para ir. não a esqueci. também não gosto menos dela. é como fumar sabe-se que é prejudicial e que é uma obsessão que vale a pena manter. deixo as decisões para o momento em que baterem à porta. a retribuição dela ao quero te ver deitada de costas pra mim com a bunda empinadinha foi um sorriso curto seguido de uísque do copo dela em meu rosto. eu achava que espelhos em tudo. estofados de oncinha. água de colônia imitando perfume. trinta reais de consumação. me davam o direito de falar o que eu quisesse para qualquer um. tudo um rito de iniciação que permitiu começarmos a conversar. depois eu saberia que sob uma vigilância distante mas atenta. o que mais atraía eram os dentes brancos. uma assimetria nos de cima, um um pouco maior. dava vontade de lambê-los. falei de nerval e latréamont. que ela não conhecia. enquanto acariciava meu rosto olhava para os lados. nunca nos olhos. não tínhamos trocado olhares nem nada. o vizinho à esquerda martela nossa parede contígua desde que eu cheguei em casa. a luminária começou a piscar. gato malhado se esgueira entre dois prédios desviando das primeiras gotas molhadas. às vezes acho que o que me fez gostar de vez foi ela nunca receber antes. uma política de satisfação garantida. o pulso hoje do martelo em meus tímpanos é o pulso ontem dela arfante sob mim suado. em silêncio. sequer parecia haver esforço. tudo deslizava. os joelhos dela. ora em meus ombros ora em meus rins. nos olhos fechados carregados de pintura envelhecida um quê de recusa. quase no final ela arranha minhas costas. sem fazer qualquer som ainda. hoje estou realmente sem dinheiro. faz uma promoção. a rua estridente do outro lado da ligação entrecorta o que quero dizer. nem doida. tá querendo me passar a perna seu viado. o direito de pernada é uma reminiscência medieval. você sabe o que é. cala a boca. financia um pacote de horas pra mim. só aceito à vista e em dinheiro. você sabe. eu não tinha seu telefone. se é que ela tinha um. conversas por orelhão. o dia em que você se apaixonar por mim você deixa de me cobrar e eu beijarei sua boca. você e eu sabemos que é mais fácil acontecer o contrário. qunado ela desligou na minha cara fiquei com o cigarro em uma mão. o telefone em outra. pensando na tradução que estava atrasada duas semanas. a fumaça que trago é mais limpa do que  muito do que ela me deu. logo depois de receber o adiantamento pela série sobre o zé do beco comprei um vinho. mandei flores e um táxi ir buscá-la. desci para comprar velas. quando voltei ela estava sentada na escada do andar esperando. levantou-se e vi. maquiagem borrada escorrendo pelos cantos do rosto. pupilas gigantes. saia rasgada com manchas úmidas. o que mais me intrigou foi o cabelo. sempre solto. em coque. fiz com que entrasse. embora ele estivesse em meu colo a vontade era de afagar seus cabelos e perguntar algo. em silêncio dei banho. café. camisa que depois ela vendeu e entregou o dinheiro para ele. foi o que disseram. ela fingiu a própria morte na época em que adotei a estratégia de só revelar que não tinha dinheiro após o terceiro. fingido ou não. orgasmo dela ou o primeiro meu. o que viesse antes. o zelador foi convencido por ela a dizer que fora atropelada. as colegas de trabalho não atendiam o orelhão. o pedestre que o fazia não sabia reconhecê-la só pelo nome ou pela descrição. mereci um tapa e um abraço ao pedir uma cerveja. agora você aprende a não me dar o calote. comecei a ligar todos os dias. sem abandonar a estratégia. ele veio me visitar. arrombou a porta. quebrou o meu nariz e o telefone, ao avançar para a máquina de escrever o empurrei. o vidro trincou e a moldura amassou no ponto em que ele tentou se agarrar. já caindo. a ligação orelhão orelhão não pôde ser completada. atendeu um corretor de seguros querendo comprar ouro. tampouco a encontrei nas calçadas de sempre. nos bares de sempre. tanto é que acabei no primeiro. no do estofado de oncinha e espelho nas paredes. seria mais fácil achar que ela nunca viu a carta escrita num guardanapo. carta mais pragmática que romântica procurando. implorando por um lugar. para ir. para deixar. para incinerar. para esquecer para concretizar alguma coisa. em seis palavras pedi. escrevi em pé apoiado no balcão e a dei ao garçom. que achava que entendia a história toda por causa da variação do grau etílico dos pedidos. da margarita jovial ao uísque de milho para apagar ausências. fazendo com que prometesse que ia entregar. esperou eu ficar razoavelmente fora de mim para anunciar o que esteve esperando a noite inteira para anunciar. é hora de fechar. encerre sua conta. e todos os esforços são em vão porque ela se matou ao saber da morte dele. apago o cigarro arremessando-o por cima do ombro. a garoa. pó fino que arde na minha pele. me fustiga. não tenho pressa. o nariz retém memória da dor. vou contemplando a rua estática. mal iluminada. gatos copulando dentro de latas de lixo que amplificam seus ruídos. presenças intuídas tremeluzem. se esgueirando entre prédios. fugiam da água que crescia. o passante eventual me aborda visivelmente alterado. orbita outras coisas. olha em meus olhos. agarra meus ombros e os sacode gritando. ele a matou por ciúmes de você. talvez tenha sido a hora de começar a ficar preocupado. já estava ensopado procurando a chave no casaco da porta do prédio que dá para a rua. sob a chuva já muito aumentada. não sei o que o zelador estaria fazendo àquela hora acordado. ele abriu a porta por dentro e quase me tranquilizou. ela fugiu ao saber o que você fez. esta poltrona é realmente boa. abstraída das minhas perguntas de quanto de verdade há em tudo isso. nas fugas. nas colisões. nas unhas. nos gestos. comandados ou não por outros.

sábado, 5 de dezembro de 2009

The piano has been drinking

um dia eu serei velha e ficarei devastada por ter conseguido viver tanto
Mia Zapata - The Gits

fugir para o méxico para iludir essa gaita
que está em tudo kafkianamente

ela me disse que eu ouço sombras
e isso vem piorando
porque agora converso com
algo que me entristece
sem que eu saiba como
e não entendo se o díficil
deste labirinto é sair ou entrar

sentado num banco esperando
um homem me aborda
me dá uma ajuda
ele quer isqueiro e gole do meu vinho
acaba me mostrando
que sentir é um problema
infelizmente apesar dos pesares
tão tangível quanto falta de dinheiro
de cigarros ou de dentes

sorriso apagado foge amedrontado
pelos cantos do que escrevo
reluta em aparecer mesmo que seja
para brilhar pela ausência
ele sussurra é melhor parar
que ficar rastejando
mas a isso não dou ouvidos

Poema X

Ontem me acusaram de dramático
Mas a verdade é que gostar de você dói
E isso compensa talvez porque eu sou masoquista
Dói a despeito de todos os esforços
Para que não doa
Afastamento e aproximação falharam
Em mudar alguma coisa porque ainda sinto o mesmo
De sempre
i'm stuck in this feeling i like so much
Não estou fazendo drama, sério
Eu gosto de reclamar e às vezes
exagero, sim
É ilusório achar que eu sou assim
e É mais acertado dizer que
Você me faz assim
Porque eu só falo penso ajo respiro escrevo você
Ainda que algumas muitas vezes na sua ausência
O que é uma pena
E não tira o valor do que sinto
E de sua onipresença sufocante que me
Apraz muito
Por vezes fictícia
Por vezes concreta
E com sorrisos e com piadinhas infames
contra mim e gestos e brigas
E com pintas que descubro em seu rosto e sei
que são a coisa mais bonita do mundo
E com olhos delineados por trás dos vidros
dos óculos
mãos largas rubrogabrielas, maiores que as minhas
Tudo isso faz qualquer coisa valer a pena

Me falaram uma vez que eu tenho
certa filosofia de vida à la canto de ossanha
Amor só é bom se doer
mas não, pra mim é mais ou menos diferente
O que tenho é bom, muito bom
E a distância disso me dói um pouquinho
E disso eu gosto também
acaba que tudo é bom, então
This is more or less what I like
about this cumpilicity thing that happened
suddenly alone; and here's to us our lucky strike

Ressaca

Algo ecoa dentro da cabeça
Um seixo que bate
E reverbera sempre que
Acham que ele tinha ido embora
Algo ecoa nas veias nos pulmões
e no sexo
Uma marca que ninguém quer para si
Mas que diz viveu-se amou-se respirou-se
Ou não
Uma tatuagem dentro
Uma mancha de nicotina dentro
Um sorriso dentro
Do vômito inunda as ruas
E que ninguém quer para si
Finge-se invisível para penetrar
Nas casas e em tudo
Afogando todos os viventes do local
Que negaram haver esta marca
e que não a vestiram em sinal
de desprezo à vida que cauteriza
deixando as piores cicatrizes
Inquisição à la conto do cortázar sobre fumigação

Sendo tido ali

[...] toda pasión tiende - con mayor velocidad 
que el resto de las emociones humanas - 
a su propio fin, tal vez por la frecuentación
 excesiva del objeto del deseo.
Roberto Bolaño - El viaje de Álvaro Rousselot

 Se afastando pulsa
Ao longe ouço zumbir e quero
Me afastar deixar ser
Para preservar o que é bom

A gente não escreve mais poesia.
é isso agora?

Drama, ó pérfido drama
Derrama tudo por aqui Porque
não sabe dizer na cara

Me afastar, deixar de ser para conquistar
Um espaço
Ou seja um
Imperialismo ao contrário
No combate à obsessão

Isso é bom?
Isso de querer evitar a tal frecuentación
excesiva
Pra preservar algo?
Eu sinceramente acho que vai levar a lugar nenhum
E queria mesmo mais desvarios.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Tendo sido ali

Me trancaram do lado de fora
Quando o despejo já não era mais um recurso válido
Sobrei com o maço de cigarros em mãos
E um sorriso perdido em algum lugar da boca
Um sorriso com que eu quis mostrar que estava bem
Mesmo tendo sido deixado para morrer
Sem saber o que é pior
Ser trancado do lado de dentro
Ou do de fora das coisas

Batem a porta infinitas vezes
E no mínimo instante antes dela fechar
Eu via tudo lá dentro
E a visão me intrigava
Como o abutre de Prometeu
A visão de
Como arruinaram minha mobília
(sofá, microondas e caneca)
Virando os cinzeiros de cabeça para baixo

Sem saber aonde me dirijo
Parto sem tentar fazer nada
Pois já não consegui abrir a porta, mesmo

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Aviso aos navegantes.

Se alguém lê este blog, gostaria de deixar registrado que agora estou participando de um outro, http://descemaisum.blogspot.com/ , de colaborações; um autor para cada dia da semana. Entrem, bastardos.