Àquela altura da noite enevoada ninguém repararia se aquele menino cego atravessando a rua sobre uma corda bamba se olhasse no espelho e fizesse a mesma pergunta em uma língua morta a se debater no asfalto recém-frio
as órbitas vazias de intenções pairam sobre o pavimento misturando-se à fumaça que sai dos bueiros
um caminhão quando vem à toda e acerta o menino o motorista é que se pergunta em língua morta por que a lataria não amassou
mas ele segue
a rua também é uma corda bamba e sempre pode vir algo maior que o caminhão e levá-lo e seguir
o próprio menino já havia feito isso atingindo a si mesmo quando se contemplou no espelho sem respostas
os faróis vazios de significados por isso mesmo dilaceram tudo inclusive o que não quis saber
tudo à tona de localizações de países distantes a atividades secretas das pessoas próximas do asfalto recém-turbulento
a placa do mendigo à margem da cena diz deus é cego surdo mudo e paralítico
como eu espantalho das moscas com meu chapéu sem copa e botas furadas
trepidando o caminhão a corda o menino o espelho e a rua sob um olhar atento de estrelas que se fazem pergunta nenhuma
sob um olhar atento de revoada de andorinhas carnívoras de ossos
otimistas todos em suma sabendo a corda é bamba e o atropelamento iminente
uma pergunta é uma bomba um monumento ao que se quer destruir seja por hesitação ou por vontade de descer da corda e sair do meio de uma rua que é simples artéria de muitas outras
Uma exposição – Mira Schendel no Tomie Ohtake. Um livro de poesia –
Acrobata, Alice Sant’Anna (Companhia das Letras, 82 págs.). Um depoimento –
Ed Motta no...
Um comentário:
Prosa boa, já te apontei as linhas que mais me agradaram - o pensamento do mendigo entrou com força, assim como sua imagem, mesmo estando à margem.
#rhymingcomment
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