sábado, 27 de março de 2010

on the road/off the tracks

                                                                                                                  headlights pointing at the dawn
                                                                                                                                       Smashing Pumpkins

um adeus à casa vazia
ao rosto sem rugas, ao dinheiro
à casa cujas ruínas habito
carbonizadas em mosaico
de lembranças caleidoscópicas
um resto de sofá, colheres sujas
um sorriso de que talvez sinta falta
uma mão na minha seria bom
pois não decidi meu jeito novo
a arrumação dos móveis e a cor das cortinas

um passo indeciso
que não cabe em mim:
as pegadas e as digitais
da minha sombra

carrego como sísifo
nunca consegui descansar minhas sombras
assim que ela voltar
até a isto digo adeus

em murmúrios
sem afagos
um taxi perde o caminho
sou uma ponte entre dois vazios
não sei articular/
a boca se move não dubla,
só diz desencontros
adeus aos meus
ao que despencou do meu corpo

um adeus que perfura os tímpanos do ar
surdo e sonolento
vem a manhã com um hálito frio
com um cheiro de náusea

peço e despeço
o que me faz ir para manter.
uma mão ao longe
um aperto de mão
um abraço e três beijos na bochecha
contaminados por meu olhar cabisbaixo
porque olhar para trás e lembrar
tem sido andar vendado nestas calçadas
cobertas por uma constelação de cacos de vidro

uma mão acenando desvenda
o que move um coração está no horizonte

em câmera lenta percorre o corpo
                                                      [meu
                                                              seu
                                                                    nosso céu] morto
que abandona aos poucos
um em um milhão de cadáveres volta
com a chance de fazer o que faltou
o braço repelido daquilo em que os dedos
quase encostaram.

àquilo que meus olhos não tocaram
a noite sobreveio
desaprendi a falar para não sentir
saudades
sou um verso escrito na areia
que a maré vem apagar
só uma palavra na multidão
de grãozinhos ásperos contra a multidão
de gotas lúcidas
só uma palavra para aqui a partir de agora
só uma palavra para o que a partir de agora
me desconhecerá: adeus.

quinta-feira, 25 de março de 2010


Percebi logo - pelo bigode, na verdade - porque aquela mulher chorando no meio-fio disse que ele gostava de se auto-proclamar o rei das façanhas inverossímeis.
Quando ele me disse que eu tinha olhos de estátua grega duvidei de estar falando com a pessoa certa. Cheguei até a duvidar de por que alguém que eu conheci nesse mesmo dia estaria dentro do meu carro a essa hora fumando um baseado comigo. Conheço muita gente há muito mais tempo que ele, e não necessariamente fumo com elas no carro. Talvez eu já o conheça e tenha esquecido do rosto dele. Bem que foi meio esquisito alguém sentar na minha mesa e já saber que eu gosto de Janis Joplin e dizer que estava aqui pra cuidar de mim, que a minha complexidade na sua dava arrepios. Apesar de meio esquisita o tempo todo a tarde foi boa, banho de chuva, querendo me convencer de, se não era a pessoa certa, pelo menos a errada não era de ser e tal. O engraçado é ele tentando me convencer de que não bebe, de que baste olhar meus olhos para se viciar no improvável. Quem sabe ele não é poeta, isso explicaria ele falar desse jeito, mas não seria muito genial. Difícil confiar em promessas dessa gente.
Meu peito nasceu nublado
num jardim de navalhas
o sol enferrujado se esconde

olhos de estátua grega
gestos de arame farpado me arrastando por um labirinto de veias e artérias sem saída
com este fio cor-de-carne que alguém amarrou na entrada
porque não quer se perder em/de mim
minha metade meio-vazia meio-cheia
cheirando a um ranço de luar que nem
andar por aí e tentar arranjar um emprego conseguiu extinguir
meu tórax é um pomar de lâminas
regado de fluoxetinas
ali o mármore de um braço
metal retorcido de um queixo esperando algo vir do horizonte
meu nariz de barro caiu de podre
espatifado no chão a um canto perto da fonte
eros barbudo com ninfas
dança circular/ ali o riacho/ aqui as raízes dos meus dedos
contaminando
dança circular pisoteando a grama recém cortada
não dá pra dormir com o barulho de pés encima do meu teto
fazem tudo em qualquer lugar

o espelho não me reconheceu
vi alguém parecido comigo sussurar algo ao seu ouvido
não podia ser eu, você sorriu.

quarta-feira, 24 de março de 2010

pra Ferdi.

O sim da sua presença
contra o não da distância na estrada
a lua enlouqueceu
sobraram seus olhos em mim
mais nada.

terça-feira, 23 de março de 2010

cem palavras
uma centena
uma catedral
uma cachoeira
de vidro
esparramado

dia nascer sem
seus olhos
intocado por
seus dedos
trazendo sol
e recados
em papéis
amassados
terrenos arrasados
portões escancarados
da sua presença
perdida

Poema geral

o corpo não me abriga mais
ter o céu como cobertor ao invés do chão
e a lua como lua, não seus olhos
                                                     [gatos

gatos em todas as janelas vendo passar
a multidão que me arrasta como um rio
os dedos não alcançam só levam o corpo
na correnteza de versos em cada boca que
como um poste meio apagado cheirando a querosene
não fazer menção
de ouvir ladainha nas ruas de pedra
apodreço debaixo de um sol na frente de tudo
igreja matriz apóstolos cegos carrinho de pipoca
um pó de inconfidência atravessa o paço do governo
filtrado amarelo pela luz que despenca
das montanhas de casinhas brancas penduradas nas montanhas
um verso ladeira abaixo
esquartejado em público acéfalo
um ponto final nesses morros coloniais
a vírgula é o rio
o mar não há mais/ ficou o chão a poeira a maré
seu sorriso subterrâneo sob minha pele a sete palmos
sou eu debaixo da capa de poeta a pena em ebulição
a árvore escandalosa raiz
partindo a cavalo o fruto leva e traz
calabouço de madeira claustrofóbica
baú com os escritos tomba da carroça
me atiro e sou um desfiladeiro
urubus a postos/minha queda não deixa rastros.

domingo, 21 de março de 2010

nuvens: versos brancos arranham de raspão não o céu
rimas imperfeitas entre si assimétricas malabares na rua deserta
um quarto entupido de gatos se deslocando com o vento

encima da pia no parapeito das janelas debaixo das camas
nos corredores e nas luminárias sob papéis em gavetas
nos olhos que mudam de cor pela posição de sol
na voz cansada que não muda de tom não modula

sábado, 20 de março de 2010

if there's a god

cada olhar é uma via na contra-mão
nós contra-via
contraria a direção

sexta-feira, 19 de março de 2010

Ritmos do pulso nas artérias dos edifícios da cidade




para Júlia V. e Hannah Arendt


silêncio bolha
silêncio contato

eu sozinho sou dois
eu sem mim nem isso nem cercas farpadas


isolar dos escombros do meu olhar
cabisbaixo num espelho

eu comigo
conspiro contra minhas máscaras

eu sem mim na multidão sou um

eu na minha companhia
não preciso olhar nos olhos do que não quero
mas devo ver o que me faz fugir

eu entre pessoas atravesso a rua na corda bamba
não é fácil
só segurar a mão de quem não conheço

eu me reflito
à minha imagem e semelhança

não projeto (não mais)
linhas em rostos que não o meu

compulsões em gestos alheios
a calçada em convulsão
[vendendo berrando eletrocutando faíscas de ferragens retorcidas manchadas de sangue] 
meus dentes caem por descuido

desaprender a sorrir
rir por dentro basta

uma em mil gotas de colírio
nos olhos cegos da cidade
um em mil casos de delírio


monólogo coletivo em um anfiteatro vazio

dead end roads placas ordenam não vá fora de si não derrape



chuva num para-brisas
repelindo

relendo a caligrafia torta
da água em meus óculos

quinta-feira, 18 de março de 2010

* i'm relapsing into desire your tongue reaching for mine
all things must pass
only me looking for both your eyes and smile shall remain
standing still til some end come strolling into my way


* tenho recaído em desejar sua língua alcançar a minha
tudo passa
só eu procurando seus olhos e seu sorriso permaneço
de pé até um fim qualquer vir se arrastando pelo meu caminho

free-jazz

Eu sou a fúria que te encontra, tromba numa avenida de propósito.
Luzes de mercúrio, vapores de mercúrio nos embebedam e dançamos sob holofotes e focos destinados a nós mesmos
a nos encontrar numa praça em que o concreto se liquidifique em tango
e o vinho se subscreva em versos.

você é a cama
eu sou o espelho no teto
cinco e meia da manhã
olhos vidrados e café
nego fogo um pássaro pousa o ventilador desligado
querendo dizer alguma coisa
pois não consigo desligar a mim mesmo
ou fazer dormir a televisão
o cinzeiro fumegante é a prova
que transborda de provas de que
não estou aqui
deixei meus olhos vidrados
minha perna inquieta, minhas mãos catalépticas
a um canto de mim
guardado embaixo da cama

sou o verso na porta do banheiro
rabisco no vidro traseiro de ônibus
me decompus
descompus
a madrugada leva num vento
meus restos por aí
construímos uma cidade na areia
com torres e fossos e quartos e todos os detalhes
sem prever como a maré

os ritmos tortos da terra indecisa
rearranjam os montinhos mudam de lugar
o que tinha sido planejado
e querido

descobri a cor verdadeira dos seus olhos ainda que você tenha me avisado
bem antes qual era
foi só olhá-los contra o sol

celofane

o horizonte de papel em chamas
pôde ser mentira se não pudessem tocá-lo com os dedos
queimar um enxame de dedos que tenta tocar
pôde ser mentira e tudo pôde ser diferente
conhecer pessoas ninguém conhece mesmo
mas pôde ser obrigado a vagar sozinho
gosto de cigarro na garganta
iluminado por algo que é apenas cenário
que todos querem ter em mãos
acariciar o sol e o que o sustenta
acariciar o rosto da lua que sorridente
maré maresia por cima do muro
de pé aprecia encima do muro

merecendo não merecendo
o céu na palma da mão
no castanho dos olhos mais aqui

quarta-feira, 17 de março de 2010

aproximei afastei e isso ainda não é apagar presença
eclipse lunar minha cabeça é uma cela
orbitando ao redor do que quero não saber

segunda-feira, 15 de março de 2010

my cat on the trunk
a pack of cigarrettes
all i'm taking with me
is all i could leave behind

skycrapers yell at me craving
for blood and money
big money and my old car
i'm ready to believe in every lie
is told the roads the whores
the whiskey the tires the engine
the bar's neon lights the window pane
one single lie to bring'em together
under a ceiling of purple piece-of-shit-shaped clouds
construir um universo novo
no momento em que as tochas apagam/eletrocutadas

da pré-história da pré-história
à pré-história de mim
só preciso de papel a mão e caneta

qualquer semelhança de
olhos arregalados e voz de inquisição
entre vocês e eles
é só coincidência

se sonho que quero me mover
e não em sonhos me movo
o braço dói diz ginsberg

mas e se sonho que estou parado
e meu corpo dormindo se move?

inaugurar um novo universo
seja  cabeça
ferida ou civilização de tijolos por terra

domingo, 14 de março de 2010

saí na rua depois de você
gente mutilada sem saber a onde ir
me perguntar o caminho
e o que são portas e o que são muros

indo mais rápido que nunca
gente cega tromba
cai na rua

sexta-feira, 12 de março de 2010

ando pela L2 como num deserto
um deserto de rostos irreconhecíveis
novas máscaras
desfiguradas que sempre quis evitar
todos os rostos são repulsivos
o meu mais que todos
reflete um rosto vazio de magritte

por baixo de um pano
tudo de que corro
um panfleto na rua
entre o meio-fio e uma boca-de-lobo
amassaram ele está meio enrugado
mas ainda dá pra ler
que anuncia salvação
milagrosa segundo os depoimentos no verso
infalível adverte quem entrega
em doze sessões
várias formas de pagamento
podendo ser parceladas algumas vezes
nos parabrisas em fila
abarrotando as lixeiras
as mãos das pessoas ávidas
o estrondo dos passos no cimento

ecoam a sede de salvação
cada muro que leva escrito
o amor é importante, porra
e lata de lixo que tombou pela enxurrada
e homens invadindo apartamentos com escadas
são a cidade pela janela
se contorcendo com sensação de membro fantasma
pedindo doze sessões
talvez de eletro-choque

América Abstrata

céu da sua boca é uma constelação
de promessas não-cumpridas
em alto-relevo gosto de cigarros baratos sob a chuva
na calçada de tijolos amarelos/você deixou seus olhos suas pernas
gravados a faca na casca de alguma árvore nossa
sol no solo
rachaduras são versos vistos dos aviões
só o solo, e a luz é
um sopro vindo do alto
sons varrendo a terra com um sim
não mudam a oscilação das plantas
não carregam insetos pequenos
pra dentro da blusa e da pele das mulheres

o pó do solo
poeira no sótão
o que quis dizer já passou
o trem ignorou a estação
a lua errou de rumo
de número da rua

debaixo deste pilotis tudo é silêncio em mim

quarta-feira, 10 de março de 2010

vivo no hiato entre hiatos
gritos e suspiros no recesso
entre te ver e cegar
ouvir a sua voz e mudar de rumo

terça-feira, 9 de março de 2010

uma voz transparente
golpe volumoso desferido no escuro
em que só ouço máquinas de escrever

já estava lá
ontem entre folhagens e o céu
vertical:a linha dos olhos à altura do horizonte

cigarra à espera
pássaros nos ombros
quando começa uma palavra
pneus no asfalto murmuram

portas duplas a guardam da chuva
a porta de si para outros
e a jaqueta meio velha
de observadora de pássaros

lágrima e insetos rolam por seu rosto impassível
não é estátua gárgula carranca
de noiva abandonada no altar
uma voz que é um teto de estrelas na multidão

segunda-feira, 8 de março de 2010

Spleen #1 / demóstenes

todos los poetas vivirán en comunas 
artísticas llamadas cárceles o manicomios
Bolaño

vigiei uma rua vazia
lágrima suspensa por dizer
estertor

minha língua passiva-agressiva
poesia consonantal
álcool queimando a garganta
não recitei
                         [ninguém recitou
me dei conta
                         [como pregar num púlpito em silêncio
das pedras em minha palavra
sussurrando contra as ondas

multidão

aprender a ser só
só aprender a ser dói
reaparecer nos destroços
como quem constrói uma cidade
inabitada inabitável

dentro de mim deserto

domingo, 7 de março de 2010

três quatro sensações por metro quadrado
a calçada na contra-mão me abriga a toda velocidade
a tristeza trêmula
                          que sinto
                                        que invento

[três por quatro na carteira
resma de segundos
filas e bancos inesperados de praça
mãos suas: versos indecisos]

delimitada não acaba com o poema
a noite/o asfalto/o minuto
                                    [a secura dos lábios inseguros
percorre minha pele
lembrando olhos lúcidos
fixos na calçada
medusa: estátua romana
sou pedra você é água

marés dedilho
meio-fios-silhueta
fios e meio de olhar
traz aqui
deixa aqui, vamos

sábado, 6 de março de 2010

um passo em silêncio
gesto calado
olhar cabisbaixo
rosto ao contrário
de pedra suas rachaduras
curso das lágrimas

mundo surdo
sol que vem
prédios não respondem

quinta-feira, 4 de março de 2010

fechou às onze e meia
não devíamos nem ter tentado
peguei o último vagão/pressenti que ela não estaria aqui
eu não pressenti
não fuma perto de mim/tem que certeza que é seguro ir por aí?
se eu não viesse você ia ter que dormir aqui
é verdade, mas parece arriscado
vamos logo, quanto mais demora mais perigoso fica
pobre bloco de carne, pensei: só tem a repetição
João Gilberto Noll

sentei 
a borda da janela não reclamou/ainda não tenho peso
me equilibrei sem usar as mãos
lembrei do começo de guerra e paz
petya rostov: uma garrafa de vodca o parapeito de uma janela
cem rublos
será que quase tudo antes dos trinta vale cem rublos?

ao que parece a palavra russa que designa guerra
também designa comunidade e mundo
será que tolstoi opôs mesmo?
como bom eremita starietz/zosima
paz e comunidade.
paz e mundo.
paz e pessoas juntas.

sentei 
à borda da janela
como um vietnamita que largou as plantações
o arroz em platôs 
para ir trabalhar na cidade e sente falta
de sentar à janela de sua própria calma
cabana ao relento
a palha e o tabaco entre os dedos
olhar o céu roxo se afastando
fugindo e sugerindo
que façamos também antes do gás dos aviões
hanoi não é tão longe

as pegadas das nuvens
o cadáver de deus
à borda de uma janela
mil braços
estala os dedos
acende um cigarro dando forma 
aos pássaros da minha tristeza
com fumaça

perdi a linha
ignoro meu começo intermitente

se o dia acabar de pôr o sol

pneumônico

deu certo
gritei com ele e ele fugiu como um cachorro
pra debaixo de uma cama
ele não estava errado
talvez por isso fugiu
um relâmpago em cada pupila assustada
dilatada cada veia dilata
o poema neo-concretista que são seus olhos
dinheiro não adianta
o roquenrou morreu
grita com ele que ele sai de lá
tão distante
movimento rápido do olho
chicoteia
dedos enormes nas entrelinhas
rostos em argila com pássaros pousados
trens de carga
folhas de papel virgens
círculos de bancos numa praça inominada
                                                               [pássaros pousados
                                                                                   realejo
                                                                          lambe-lambe
                                                                              altofalante
                                                                      cigana eventual
                                                                                 mendigo
                                                                                  o circo]

farsante vai embora
a despeito das donzelas que suplicam nos varais
choram a partida querem ver o homembaladecanhão cuspir fogo atirar facas
de cadilaque preto
os trombonistas saúdam, até o cara da tuba /não gordo/ saúda
sol;meteoro;"hail!"

o que há dentro de mim
é o passado com que sonhei
black is weird
Hunter S. Thompson

negro na água
negro no céu
dedos estáticos
portas escancaram ao sabor da maré de gente
janelas emudeceram
o velho kafkiano foi embora
madeira crepita
vento diapasão fustiga
não/absorta/se atreve a dizer
sonhou
acordou veio à tona
súbita
no silêncio de olhos arregalados
levita

negra a água tinge
pane elétrica
negro o céu
quarto asfixiado
sem janelas
negro hálito de deus
moribunda escultura
à beira da estrada

braços abertos
olhos recusam
a boca recusa
recuam

negro sim no precipício de concreto armado
nega o fim porque fim
por que não? amargo
estatelada no asfalto
Gente preta apertada
no útero de um vagão
de trem vai
relógio no pulso
chibata nas costas

gente aprisionada
preta
preta a pressa
preto o chão dos trilhos
ensangüentam engrenagens
sangue preto é carvão

passa o trem de hora em hora
dar de comer aos fornos
as vísceras que o tempo deixou
os restos das pessoas presas
abortadas por segundos
por centésimos de milésimos
perderam o caminho do trabalho
erraram o ponto do trem
o ponto da hora atrasou

quarta-feira, 3 de março de 2010

as respostas transparentes
barras de uma cela
moscas entre quatro paredes
separadas do resto por quatro respostas
à mesma pergunta

um suspiro toma coragem
antes de desistir
exausto

décimoquinto décimossétimo

por trás das pálpebras cerradas 
inflamaram-se chamas verdes 
Mikhail Bulgákov

ia te chamar de louco se não se achasse melhor que ele que estranho isso porque eu sonhei ou pensei que eu falaria isso pra alguém.
não sou melhor que ele se eu fosse ele não teria o que eu quero.
se ele for pior é porque ela não te mereceu mesmo.
não é por isso a sede tem meandros inexplorados e que ninguém que visitou descreve e alguém sempre sonha que vai dizer algo nunca se sabe qual é o lado certo do espelho se é o que o sonha ou o que sonhado retribui.
as pessoas têm preferências misteriosas também preferem névoa sempre.
prefiro a luz da lua projetando versos em um rosto.
mármore sangue prédios em ruínas tudo o que percorro são escombros.
prefiro o sol e o vento que cortam a respiração em dois sua voz petrificada em silêncios me perfurar.
impregnados por um cheiro transparente elevamos no ar o que trouxe as pessoas aqui.
a sede é a solução por não ser o alvo solução para problemas que não sendo nossos atingem pessoas que ignoramos que nos ignoram e são mais felizes por isso.
a cada respiração na noite hesito tropeço a cada presença que se afasta com passos silenciosos e sei o que há por trás da névoa cruzando invadindo este espaço.
mutilados obesos em passarelas só enxergo a ponta vermelha do cigarro aceso e já sei.
não são felizes não podemos ser felizes sem enxergar mais que a ponta única do cigarro a noite solitária fora tão promissora tão poucas horas antes.
nesse caso suas presenças seriam cortinas descontínuas a revelar uma intenção que ninguém concretizou.
nesse caso um taxi desgovernado atropelaria as pontas ambulantes não sabem o que é a sede não sabem que não está no jornal no horóscopo sequer nem num toque do cadáver fortuito de uma lembrança.
nesse caso os obesos sabendo que as ausências da sede.
períodos bem longos em que nem o labirinto de lençóis sujos assusta mais.
são o motivo de andar fumando numa cidade cujo ritmo da respiração a esta hora não é mais que um sussurro.
ficariam em casa à prova de desilusões os bueiros gritam escancaram o que é a quem para e olha.
concordo é bem provável que aquele cara cego sem pernas escorado na parede do prédio tocando sanfona saiba o que é a sede porque ele é imune.
mas não é imunização não é uma vacina também não é a doença é um carro com um altofalante encima  o pneu furou ele está parado no acostamento mas o autofalante continua incansável.
com pássaros chocando contra o parabrisa?
não esse é o ciúme.

terça-feira, 2 de março de 2010

tropecei um vento que trazia uma voz me derrubou
lembrei de quando você disse
não morremos
e escreveu isso em nossa pele
em cada esquina dos nossos toques

agora somos dois

segunda-feira, 1 de março de 2010


se eu te digo te amo 
que te baste por ora 
sem remoer o passado
os rios erraram o percurso

o moinho quebrou
Só gira adiante, agora

her divine shadow

flutua ressoa paira
reverbera afasta colide
tangencia

translúcida atravessa minhas pálpebras
habita minha retina
ia te chamar de louco se não se achasse melhor que ele, que estranho isso porque eu sonhei ou pensei que eu falaria isso pra alguém
não sou melhor que ele, se eu fosse ele não teria o que eu quero
se ele for pior é porque ela não te mereceu mesmo
não é por isso, o amor tem meandros inexplorados e que ninguém que visitou descreve e alguém sempre sonha que vai dizer algo, nunca se sabe qual é o lado certo do espelho, se é o que o sonha ou o que sonhado retribui
as pessoas têm preferências misteriosas também, preferem névoa sempre
prefiro a luz da lua projetando versos em um rosto
mármore sangue. prédios em ruínas tudo o que percorro são escombros
prefiro o sol e o vento que cortam a respiração em dois sua voz petrificada em silêncios me perfurar
impregnados por um cheiro transparente elevamos no ar o que trouxe as pessoas aqui
o amor é a solução por não ser o alvo. solução para problemas que, não sendo nossos, atingem pessoas que ignoramos que nos ignoram e são mais felizes por isso.

arestas de cotidiano/ à undécima hora

acho que levei uma multa outro dia
comprei os cigarros mas não tinha isqueiro
não deixa cair o violão
eu te espero
preciso subir e buscar o ingresso
não era um pássaro era uma borboleta grande
pára aqui
ficou parecendo o willie caolho
é rápido já volto pode esperar ali
olha a lua
por que você derramou
ele tem sido arrogante em relação a mim
sob impressão de estar tendo recaídas em relação a ela
prefiro frio não precisa desligar
busca lá
abaixa o volume
passos na noite calçada vazia
vou de escada
prazer
meu batom acabou
será que precisa comprar gelo
ela morava num edifício chamado marcel proust
é uma questão de epistemologia comparada
esse não precisa de receita médica
vontade de tomar sorvete
o que foi esse barulho
imagina não há de que
quem lembrou de trazer copos
a cada amanhecer seu olhos comigo
não conseguiria não caindo do décimo quinto andar
retalhos das vozes
restos dos gestos
crateras
ecos falsos nas paredes

olheiras marcas de pneu asfalto em mim

não acabo de desacostumar
seu rosto ao meu

domingo, 28 de fevereiro de 2010

curva de rio

,mas matei errado
apunhalei a sombra
que não desistiu de mim

começando a insistir
a chuva arrasta sobras
as portas trancadas
não sei por que você faz isso
consigo mesma e com as árvores
gravar na pele na casca
na casca das nuvens
com pontas das facas

cachorro qualquer
numa tarde esquecida
as portas trancadas
recusam uma vida o copo virou
a sede secou
por que você fez isso
os pombos de concreto
silhuetas abstratas cujos olhos preveêm chuva
a te desabrigar desse espaço aberto
como absortas testemunhas

a dor que carrego
sem começo é por você
sinto frio em mim é
o vento que balança seu cabelo
te embala em um sono em que você sonha com carros velozes

quando os gatos vêm lamber suas feridas
secar uma lágrima que ficou pendurada

sábado, 27 de fevereiro de 2010

in the grand scheme of themes
Jeff Ament

tem tempo que não te vejo
que minha mão na sua não promete que 
meu sorriso reflete o seu

repete o que eu te disse quando você foi?
mente que seus dedos estão ao alcance
ao telefone 
sua voz sincera tem gosto
de postes mal-apagados na noite feita

mas eu sei desconfio
já ouço seus passos no corredor
reclamando que não fui buscar

pensei confesso e recrio

nenhum foi maior que nós juntos
meu rosto na sua foto
canaliza os trilhos que separam
o céu que compartilhamos
um sol que é mais seu
na janela nossa que olha para fora
espia a rua pra ver se é você
tirando as malas do taxi

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Se sua vista não permitir, eu recito
quando a velhice disser já chega
de promessas fechem as cortinas
sobre os olhos esbranquiçados
eu seguro sua mão sinto seu pulso
contra o meu vir e se espatifar
no meio do verso
cacos de palavras afiados
incrustados na conversa cotidiana
jogam milho sentados num banco
de praça os pombos gostam disso
se sua vista não permitir as palavras
te trago a cidade em braille
as pessoas em alto-relevo na carne-viva
do ar-concreto
flutuam disseminam um sentido
ao avesso que só tem gosto
se sua vista não permitir

já devia saber que os poemas
também precisam deitar e esquecer
olhai como parece uma asa que viesse de longe
Jorge de Lima

um homem bate à porta quer voltar
quer buscar o gato que esqueceu aqui 
quem abre esqueceu o olhar a um canto
ela sorri de órbitas vazias
sabe que há noite ao fundo pelo
calor das fogueiras
o chapéu e o cheiro de verniz na madeira
são uma infância súbita sob as asas
de um retorno de um toque imprevisto 
na escuridão, a prataria ronrona
devolve à sala a revoada de fantasmas
que entra com o homem
tira o chapéu aceita o chá outra vez
ela cruza as pernas e demonstra interesse
a rua se calou
só a lua tem algo a dizer
as multidões nas calçadas vazias
mal-iluminadas andam atravessam
o homem faz menção de sair
esclarecendo por que voltou
por que deve ir embora o asfalto esfriou
as cercas ao redor desenham um labirinto
e sem poder contemplar o teto
as infiltrações os abajures desmemoriados
a ela só cabe deitar
o branco dos lençóis é igual ao dos olhos
que perdeu e ao homem
a ela só cabe sair
as ruas não são mais habitadas que
os sonhos que tem sob a pele

perder uma memória que encontrou num baú
genética mente
se aqueles dois de mãos dadas soubessem
que as vírgulas são um desperdício
que sem escolher não estariam ali
não colocariam culpas

geneticamente
traçou um mapa nas linhas das mãos
nas veias dos olhos

avenidas por onde perdem

caminham cegos por uma cidade
só se orientam nas sombras que
projetam um no outro
rios que desaguam em desmaios apressados
de
embates de dedos em carícias

Me pediram para me auto-biografar e não consegui.



A tomada da consciência do dever poético foi simultânea ao encontro com a palavra. Ela ali diante de mim e ao esbarrar eu soube de uma vez, o dever do poeta não é para consigo ou para com outros ou para com os sentimentos do mundo; é um trabalho de edificação dos escombros de si mesmo e de sua realidade por meio do contato com as palavras, sendo estas não apenas a luva por meio da qual toco o que  me circunda e circunda outros e sim a silhueta mesma das coisas. Há um compromisso implícito em cada poema, desde o primeiro canto da Ilíada, desvendar a proporção entre tudo e nada, entre um pássaro e um poste, um motor e uma ninfa, um deserto em coma e um rio de súplicas através do sistema taxonômico da língua, que, mesmo adquirida, é anterior à experiência, às formas, ao pulso, aos suspiros, às oscilações e aos gestos - o poeta é o material da palavra.
O divã e a escada são muros a ser demolidos com a caneta e os dedos trêmulos.
a estrada silencia atroz entre sombras
estátuas guilhotinadas pelo vento
espantam pássaros que pousam nos ombros

este carro morreu o deserto o apunhalou
discursivamente
é um ponto
uma quantidade discreta de vontades
que rola pelo vazio;
o espaço entre o pneu e o asfalto

pane e pânico entre quem viu
o vento varrer a poeira
à beira da vertigem

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Trombei com a sua presença dentro daquilo que desaprendi
não vou mais abrir livros

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Lâmpada e papel

as pegadas que apago
um sinal de fumaça ao longe
habito entre um e outro

hesito

Amanhã troco de corpo
o corpo me troca comigo
como quem muda de roupa de pele de planta
meus braços indecisos pendurados num varal
ao som de um vento
pássaros pousam em palestra
antes de nascer articulo dentro do meu ventre
poeira de planos
traças nos mapas
nas fronteiras
escadas que levam a lugar nenhum
e a sótãos vazios em que piso em cacos de vidro
meus olhos se espalham abatidos
na velhice precoce espelham
as perguntas que me farão pedindo uma senha
para me deixar
se meus ex-dentes marcarem o asfalto
seu olhar já veio marcando os sulcos em meu rosto
como chuva em enxurrada de
dedos rígidos que desafinarão
são teclas velhas não seguram mais um martelo uma caneta
o espelho racha
o chão absorveu cotidiano uma lágrima

contém todos os amanheceres
os resume a uma linha vital em um monitor descontínuo

domingo, 21 de fevereiro de 2010

a Ju ajudou.

Talvez seja isso
Aquilo surgiu do nada e escureceu o céu a ponto de não conseguir ver outras costas outros faróis
É uma boa alternativa sim


barco de papel
barricada contra a natureza corrente das coisas
as velas dissolvem
o sabor do vento dos meus naufrágios
coerente é lançar a âncora
embora sempre à deriva
e às marés sucumbir
nasço com o sol
fui dormir no berço do dia
nem os passos apressados
ecoando me perdoam/acordam
gente apaixonada e furiosa sinto
um sol que nasce sob minha pele
eu durmo
sonho que durmo sonhando
que escrevo que durmo
sob um cobertor-constelação
de luas logo acima da minha pele
orbita
olhos e gestos ao meu redor
são estrelas cadentes
rasgando abrindo crateras no meu sorriso
(meteoritos/)tijolos da civilização que fundarei
nasço com o sol morro com o dia
meu grito primal é seu fôlego de começo
recém nascidos de olhos arregalados
o meio-fio vai embora escorre
como o seu olhar
me persegue delineando
a cidade que sinto
quase um tango
suas pernas em minha direção
ocupam a faixa das ambulâncias/atropelando
a língua que eu vou inventar
a palavra que eu vou inventar
para a sua presença iminente/atordoando/ensurdece
só vejo bocas alheias movendo
e a sua imóvel dublando por cima do estrondo

sábado, 20 de fevereiro de 2010

O rastro das nuvens
os carros no eixão
os gritos sob a noite que
esconde olhares
murmuram um rosto
sussurram um nome

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

não sei como começar este poema
a fileira de carros relincha ao me redor esperando o semáforo
abrir para poderem me atropelar
enfileirados o barulho dos motores esconde
por trás da pressa, xingam eu sei
não deveria estar aqui
todo mundo disse que não podia ser bom vir aqui
é um jeito fácil de ganhar dinheiro

rezando pela ausência de vento
pássaros e crianças atravessando a toda velocidade
pela ausência de um motoboy que avance o sinal
arruine tudo

não sei começar, tiro as facas do bolso
e começo

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

bem-me-quer

em cada nascer do sol que perdi
resumido neste
a promessa, um sorriso antigo de volta

em cada pôr
do sol
um céu que vai
a luz que falta
para completar meu corpo
caminhos que trombam não deixam marcas
seu olhar que afasta lentamente é uma trilha de gaivotas extraviadas

demole quem sou
fratura o que quero

pulveriza as mariposas ao redor da luminária
da noite passada em claro
em vão
que vão, perguntas sem respostas

trovejam versos que respingam
confundo com lágrimas com risadas

violão perde as cordas vocais
cinzeiro transborda
inunda
saio logo de manhã

ver o mundo-berro-de-recém-nascido
sem saber o que você me depara

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

À Ju, agradeço a inspiração renovada.

as mãos trêmulas de café
os braços firmes
o cigarro no canto da boca
carregam a ilusão em caixas
os sentimentos dentro de contêineres mal lacrados
transbordando naufrágios que não são seus
mas que obrigatoriamente devem ser escritos
levados em segurança
espatifa as próprias caixas para ver de longe
quebra um abajur holandês
que encalhou ali há mais de sessenta anos
e só quer o que não alcança
o que é miragem e que não é seu
nunca será
as pessoas no mar de concreto
e os barcos que trazem o material
à escrivaninha do estivador
Para a Júlia e os bêbados com quem ela esbarra.

estivador nunca esteve no mar
ele só tem como parar e olhar
quando está livre de cargas

aspira ao sal dos espaços abertos
por estar confinado a obrigações
prendem a terra seu passo
hesitante em largar os fardos
e morrer afogado
se atirando à vida que tanto quer

só espreita o que passa diante dele
ignorado suportando um mundo que
se não tomar para si ninguém quererá

aspira o sol da vida dos outros
iluminar um trabalho
mais só que os outros que, sós, admiram de longe

o estivador no porto das palavras
recebe e carrega o que todo o resto enviou
frustra enviar nunca,
por ninguém querer ler o que carrega

o que transformou com as mãos
outros esmagam com os pés
pisam sem querer quando passeiam por ali

o porto é um jardim impróprio de flores resignadas
por onde ninguém devia passear
e o estivador fica ali

ameaçador

recolhido à insignificância particular
ao valor íntimo de todos os escombros que vieram
encalhar em seus braços-caneta

seus escritos
carga apócrifa

O menino-bolha

flutua insondável pelo céu que pergunta
e oprime esmagando com nuvens

flutua dentro da bolha por cima das cabeças
não encosta nem em si mesmo
esmaga o ar em torno
amortece tudo que atinja
querendo evitar contato

flutua a favor do vento
afastando as presenças da sua
vai desviando
vai ziguezagueando
para seguir incólume intacto insosso
inerte no fundo do céu que é um rio
que é uma banheira
que encheu para si mesmo
e em que entra sozinho

à deriva como este verso no poema

não olha nos olhos
de outras bolhas

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

traduzir poesia alheia
se não consigo escrever meus dedos
e minha língua

o chão em que piso é instável
sem referências a placas
e a outras indicações

traduzir vida alheia
e sentimentos que outros tiveram
não está ao alcance das escolhas
da caneta e do papel

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Poema numa parede de prisão

"O nome do órfão era ismael
nome expulso quando começou a rabiscar nas paredes
do dormitório do orfanato frases que nunca aprendera a ler
sem saber o que era spray o que era tinta
só segurava firme ao ser posto na rua
o lápis de que a professora dali com sorte não daria pela falta
e se desse pela falta com sorte
não tomaria as ruas procurando o ladrãozinho
a esta altura já sem camisa
descalço com as bermudas rasgadas
há uma semana sem dormir
dormindo sob a proteção das árvores escassas
só preocupado em tatuar a cidade
e a retina dos passantes

sua primeira aparição pública foi ousada
na praça do palácio do governo municipal
recobriu um banco
'esses versos são os órgãos da cidade
arrancá-los é condená-la ao coma induzido'
nem os policiais que vieram revistar
encontrando-o nos arredores ainda inexperientes de si
depois da surra que aplicaram
entenderam a frase, mas era depredar patrimônio
e depredar patrimônio é depredar patrimônio

ninguém viu ismael
ninguém cheirou ou sentiu sua presença
ninguém sabia seu nome até começar a assinar
quando começaram a apagá-lo
com cuidado retocava cada verso pendurado
em lugares a que ninguém prestaria atenção
até esbarrar com as letras
claras como um anúncio
elas mesmas um anúncio

as putas que o conheciam de vista diziam que era ele
que escrevia nas portas de banheiros
seu local de trabalho
ele negava

'a nuvem observa o erro de cada um
e obriga o trânsito a serpentear
por rotas inesperadas'
era um poeta comum
supostamente só era melhor
publicitário que outros
estendia uma corda bamba entre prédios
para poetizar as marquises
aos poucos a atitude se disseminou
já não era a mesma coisa os versos eram piores
sabiam não ter jorrado do mesmo lápis
roubado da instituição correcional

os mendigos vagabundos andarilhos diziam
que era ele que escrevia nos para-choques de caminhão
paisagens da janela do seu local de trabalho
ele negava

o garoto não alcançava as janelas
um caixote de feira era o suporte dos versos
começaram a espionar
a querer saber por que um
'cuide da vida de suas palavras'
despertava tanta atenção no resto do mundo
era um vândalo disfarçado de quintana diziam
começava a suscitar algo
o acreditavam oposição

'se você me vê em todos os lugares é porque
também é onipresente' ele era trivial,
fruto do sistema
escritor apócrifo de si mesmo, se dizia
a propor opiniões de cima, minando as bases
do que o fazia desconfiar

o surpreenderam e o espancaram
numa armadilha em prol da ordem pública
ele que já não comia chegou a sentir mais fome
ele que já não precisava existir fora de sombras
foi fichado e fotografado
'a respiração no compasso de um erro
as mãos trêmulas deixam cair em silêncio um lápis
nesta calçada imunda inundada de tristezas'

a parede de sua cela é um mapa
desenhado não com o lápis
com a colher que outros usariam para marcar
os dias que faltam para sair dali
mapa que indica tanto veias entupidas
olhos esclerosados pernas amputadas
quanto a futilidade em tentar resumir
em palavras um amontoado de concreto

sua pele já se acostumou a escrever
versos em hematomas
na superfície do que foi o hematoma bonito da cidade"

sábado, 13 de fevereiro de 2010

veio um vento e me virou do avesso
as pessoas passam e olham meus ossos
um circo já me anuncia
pássaros devoram minhas vísceras
escancaram o que tenho por dentro
do que me é interno

versos que ao contrário gritam
esperneam contra o que me ensurdece
fazem uma passeata
protestam buzinam apitam
estão à mostra e não querem o que há
buscam pássaros que rumem
para onde devo seguir
seja só
ou em paralelo a você

quero que uma presença
incorpórea que de vez em quando se materializa
me/
se/
nos decida
sem desculpas
a pedir ou dar

longe/perto
negligência/overdose
poesia/briga
jazz/rock
seu corpo não ocupa duas posições em mim

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

uma vela muito tímida
na escuridão devora palavras
seus dentes flácidos rasgam e roem e rompem
rabisca num céu de cegos
a caligrafia do que não pôde dizer
a cabeça treme de frio
indaga a indecisão das pernas

muito fraca indolente desafia
as dores do parto
e as dores de engolir
primeiro mergulho de batiscafo
a rua é o tempo que demoro para enxergá-la
o tempo memória dos dedos
pulsando cego em cada palmo de asfalto cru
na aspereza da pele
no calor da pele cega
pele-atrito que simultânea erode
e me completa

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Coerência







quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

são dois que andam em calçadas separadas
estreita a calçada estreitos eles mesmos
ensimesmados querem saber sem olhar para a rua
o porquê das árvores e dos carros estarem delineados pelas montanhas ao fundo
e estas pelo céu que não acaba, mais ao fundo ainda,
atravessam as ruas transversais sem prestar atenção
trombam com cada pessoa levando cachorro e com cada caixa do correio
já pisaram em mais de um pé
foram atropelados por mais de uma porta súbita
seguem absortos cada um sobre um trilho na mesma direção ignorando
presenças mútuas perguntas que compartilham
resmungos que provavelmente serão recíprocos se confrontados

são dois que dividem um rumo que não é um destino
querendo o mesmo sem esforço para conseguir
nenhuma pessoa vai dizer que soube ou que quis saber
mas eles se encontram
lá no final da avenida
como um encontro marcado desde sempre
um surge com ar meio ressabiado sem saber a quem se dirigir
tem que esperar o outro perguntar
ah, você também veio
é mesmo, que coincidência, não sabia que você gostava de andar por aqui
pois é, vim pensando nessas coisas de sempre
e seguiriam não sei se pela mesma calçada,
pelo meio da rua
ou em em calçadas diferentes

pensaram no mesmo
quiseram o mesmo
se encontraram no labirinto da cidade
se encontraram no labirinto de si mesmos
nos intervalos de cada um, na brecha que cada um
soube aproveitar só porque não tinha planejado fazer isso
caminharam pelas artérias um do outro desde já
ignorando ou fingindo
é melhor não deixar transparecer
vai que o outro percebe
o que há por dentro dos gestos por trás das palavras
aí não tem mais graça, é melhor manter sem saber
e ficar na sombra da dúvida
vai que se encontram por ali

quase todo mundo sabia:
os prédios previram
os carros a toda velocidade mentem, eles também previram
as coisas enfileiradas, que são a forma da cidade:
postes
canos
fios
anseios
represas
amanheceres
caminhões
poças de água
mendigos sob marquises;
a imensa fila que a cidade é previu -
se corriam paralelos na mesma direção
se perguntavam o porquê da cidade e da vida serem assim
se se encontraram, como quaisquer paralelas, num infinito
que é o âmbito dos pensamentos disfarçados de palavras
não importando a timidez narcisista de um
ou a ambição recalcada do outro
ou se quererão se ver quaisquer outras vezes
naquela convergência do esgoto de onde vivem
esgoto/vísceras/entranhas/sangue&pus ali desemboca tudo
o que corre desplanejado pelas ruas -
a colisão era visível a curto prazo

como um jazz modal
sem harmonia mirando um alvo bem longe
um jazz mortal/o saxofonista é um atirador cego
de facas cegas que só perfuram os órgãos
deixam intacta a pele das intenções que os juntaram
um uivo bem longe que cruza a rua
avança o sinal muda o sentido do que há até ali
naquele ponto final depois do desvio
perto da ponte que ninguém usa mais

sob andaimes e ao longo de entradas do metrô
antes de esbarrar já se perderam sem aviso
sem pânico para não dar mostras
não precisar parar para pedir informações

são dois que andam
um pelos olhos do outro

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

um espelho me dizia
se você não é daqui, eu tampouco fui
vim de fora
te encontrei na estrada
o que me impeça/
o âmago que queira atingir
você não tem

quero aqui e que agora como sempre
para mim
você assim
como quem acabo de conhecer
sem mais

Gloria Lewis

o teto desmoronando sobre a porta aberta
única saída em segundos
vou sem ansiedade
sem saber que tenho tido de fazer uma escolha
a porta na verdade é bifurcação
provei o sabor de um sorriso
tinha gosto de brisa
, de algo que não identifiquei

seu labirinto com paredes azuis
suas mãos de encostar
o céu do meu rosto ao chão da sua boca
depois das palavras nas caixas
dos sorrisos em garrafas vazias
você me espera no carro
alheia aos rugidos na rua
a gente chama nossa música
de conversa de elevador
meias palavras e toques inteiros
me perdi e te encontrei
perdida sabendo o caminho
por entre destroços

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O dia com sua ligação
fez algum sentido, me tirou da penumbra

prédios altos dia quente
telefone gritando
pessoas em silêncio

ponho Jimi Hendrix
e espero a hora de te ver
A cabeça se esforçando
contendo impulso de ligar

de pulsos em pulsos
deixar de pensar
cortar tudo

sábado, 6 de fevereiro de 2010

o mundo codificado

quando o horizonte começa a mudar de cor
o vento perturba os sacos de lixo os mendigos as árvores
rabisco infiltrações na parede
jorro versos que corroem o que me delimita
o sorriso o olhar que me contigencia e define
por inércia escrevo você
o que nos separou já doeu
um céu que não é mais meu
que não mais persigo
vomita estrelas engole lâmpadas
que escurecem meus erros contigo
esclarecem: anestesia é negligência
estou debruçado numa janela
olha espreita esperando
uma resposta que una
todos os medos em um
todos os medos em mim
jurando ser mais eficaz que o resto em fazê-los desaparecer
não te troquei por nada
desejo runs high na contra-mão das vontades
não te troquei por algo
na verdade, substituí a mim.

quando o horizonte começar
terei partido
o meu fim é por aqui

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

você é vírgula fora de lugar
adultera meus sentidos
refaz meus significados.

A alma imortal.

o mundo passava diante dos seus olhos, mas eles se mantinham voltados para dentro
para um mundo que ela imaginou de muitos
sendo mais seu que de outros

olhava para si e para seus anseios
sem perceber que do outro lado o espelho também observa
aconselha a ouvidos surdos
olhar para fora
ou para dentro
é nada diferente visto de fora

tudo são projetos que ela realiza se quiser, tudo é uma ótica
uma visão por dentro de algo
de dentro ou de fora

o mundo passa diante dos olhos dela
mas seus olhos são um mar azul
de sonhos diante de um mundo que não sabe o que oferece
mas sabe o que oferece a ele

sem hesitar
olhando firme
com um sorriso no canto da boca
um sorriso de quem descobriu engrenagens
que quer superar.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

eu sou uma lágrima que quero evitar
fileira de pérolas na forma de um sorriso de um colar
de gotas de orvalho na grama da pele

Para alguém.

, Sorriso solar irônico
com as mãos agitadas orbitando ao redor,
queria que suas intenções fossem imagens:
você ali projetando o futuro
com uns materiais estranhos de sonhos e planos.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Erupções.

O céu é meu papel
moldo nas nuvens minha caligrafia
o azul pergunta: desalinha o que escrevo a cada linha contigo

meus dedos inábeis apagam
do teu rosto a cada acrobacia da fumaça
algumas demonstrações
monte de garranchos brancos
ossos do céu fraturados trovejando
sobre nossas escolhas

Dudeísmo

westwards the wagons
into bewilderment

papéis
foto na carteira
são poeira: meu deserto sob as vísceras da cidade
sobre tudo o que deixo

sem meus cigarros
sem causa
enfim só

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

se minhas mãos sangrassem
com meus olhos fixos num ponto que está tão longe que não enxergo
eu  saberia que essa brisa é você ao meu redor
e o mundo não seria um labirinto de nuvens negras indiscernível.

se os pássaros empoleirados na linha do horizonte enxergassem a minha deriva
as casas que destruí dos titãs que insultei
esquecendo
do resto e de que há um resto
eles me rosnariam
o mundo não é este ponto tão longe
e o ponto não é este mundo tão longe
que nunca atingiria
nem se meus pés descalços soubessem o caminho.
sou uma cascata
sobre meus próprios desmoronamentos
você me disse que minha tristeza
só é mais ela debaixo do tapete

eu só sou mais eu sob a pele da minha
poesia
que esmaga
e amarga me deixa deixar de pensar.