segunda-feira, 7 de junho de 2010

a tarde caiu num frio
invadiu os campos com seus espectros
de cores mortas

melhor que congelado
o sol despencar em tiras como grades
aprisionando os membros que deixam
cair pelo caminho

na frente os velhos e crianças
as mulheres chorando neurastênicas
gente que a guerra fez tremer
que acham orgulho em andar maltrapilhos
pedindo

os combatentes, as baixas
os que realmente foram mutilados
na retaguarda
de carregar últimos olhares consigo

um exército perdido em manobras de recuar
é o declive daquela colina
os presságios escondidos em nuvens
o labirinto de trincheiras mal-traçadas

marcham a um país que pertence
a memórias cujas ruínas
não são o mapa do que perderam

um sol e uma lua
bosques que espreitam
cidades da terra arrasada
suspiram por baixo de um lençol de neve
que não desvendem os pulsos

marcham eles, que mutilados de gestos
e de língua,
perderam quaisquer línguas de sinais
e sinais na pele indicam uma direção
de volta ao campo de batalha

e correm
e esperneiam
e berros mais altos que bombas

a marcha dos que perderam alguma
coisa se arrasta serpenteando
a estrada suja

pisando merda, comendo merda
entre os corpos que tiveram
a sorte de não sobreviver

terça-feira, 1 de junho de 2010

pra Ferdi porque inspiração é 




Como "um estou nas suas mãos pra decidir, a minha vontade é a mesma do começo". 
Porque amo mostrar que amo. 


As lágrimas já aprenderam o percurso trêmulo do rosto 
o silêncio são as perguntas mais profundas sobre o mesmo tema
porque amo por que mostrar que amo
e se ninguém acreditar ou quiser saber
eu for uma palavra na areia da praia que você prometeu
contra o vento você quem sabe porque a partir do momento em que eu sei
ponho tudo à sua vontade as lágrimas como facas
já aprenderam a me sulcar a escrever versos na areia que sou
versos demonstram nada e eu devo ser mentira a essa altura
disfarçando a letra pra ninguém perceber
que eu não sei escrever sem ser na sua caligrafia

segunda-feira, 31 de maio de 2010

a um cantinho que não é o seu
há uma esquina de mim que se arrebenta
por falta de dedos pra te tocar

há um canto em mim represado
notas que não sou eu

que são as nuances do azul no seu rosto
ser um céu menos nosso
que quando acreditar em mim era fácil

não peço desculpas por te amar
e por ser um erro à sua frente
só não esqueça que o que foi poder ser
está nas suas mãos

distância longa de alienação de fuga
enquanto só aspiro a
encontro de toques reverberando na noite rápida

você que sabe.

domingo, 30 de maio de 2010

a partir do dia em que
roupas em chamas e gritos surdos
descabeladas olheiras
a vi correr de si mesma
se esconder na própria sombra
hoje me perguntam de voz
logo eu que estou rouco
sem preferir o silêncio
quiseram saber
de poemas atrasados
só porque estou te esperando
as duas mãos latejando
seja lá por que motivo
doendo doendo mesmo

e esse poema sai ainda
curto, começado com um verso de um sonho
quase tão trêmulo quanto eu
como se eu o verso e sonho
escrevesse com a mão direita
no final eu acordo e o poema
sai, está aqui pra te dizer

você é minha caligrafia

sábado, 29 de maio de 2010

não é um labirinto argentino
de tigres e espelhos
ou ficar bêbado sob uma marquise de prédio
tendo perdido dinheiro nos cavalos
ou uma promoção de livros
a cinco reais
ou perder a carroça que me levaria à cidade
pra conseguir um emprego

já foi, agora é
é andar na rua provocar arranhões na pele
esbarram de raspão e fazem sangrar
seus sons furam os tímpanos

quinta-feira, 27 de maio de 2010

calei uns versos flamejantes no caminho
esperei na estação deserta de taxis
e vim andando sem vender uma linha
uma xérox, um aviãozinho, um tsuru, nada
porque só trago poemas inúteis
umas rimas que qualquer um podia encontrar
expiro fumaças lascivas de te escrever

não sou eu que vou reter as palavras que são
e as que não são/ as que são nossas a cama lembra
guardou sob o lençol
as que são dos que fui o papel cuspiu fora
lá fora só são caroço de melancia intermitendo o chão estrelado

os passos ecoam na beira da estrada
à margem as margens delineiam máscaras
esbofeteadas de palavras que se rebelaram do cativeiro
escorreram da boca e não foram bem recebidas
cumprimentos oficiais e comendas
a um guia de cegos que também 
cego pregou errado tropeçando
nas cabeças de um deserto multitudinário
que um sermão sai do outro
e uma boa ação começa no seu contrário
e não o que era voz corrente
de olho por olho e dente por dente
e meio-fio no dente de quem descumprir


o desprezo do silêncio de lavadas mãos
contra a súplica verborrágica do ungido
por merda e suor do povo controlado


arrebatadas chibatas barrocas gravando
arabescos de sangue fedendo encima da pele


retroparidas as palavras
do invidente crucificado
um castelo na praia com torres alfinetando o horizonte
furando o sol como a um balão que perderá a trajetória
malemolente bexiga amarela vagando de trajetória esvaziada

um castelo na praia com poços drenando o oceano
abrigando monstros abissais e rugidos antediluvianos
e nós dois numa jangada lançando redes

um castelo na praia com donzelas acenando lenços nas janelas
cavaleiros em seus cavalos sob juramentos
em justas arranjadas pra impressionar a corte

um castelo na praia com jardins de conchas germinando
a colheita do orvalho em seus cabelos logo pela manhã
assim que soar a trombeta e desfizerem as camas

um castelo holofote na praia
que a quem contemplar por mais de quinze minutos cega
em ritmos de maré que não previmos

o corpo se deita sob o castelo
amolda suas vontades e em imensidão de grãos atrozes
legendando a figura

escreveram com o dedo na areia, na frente de um castelo na praia
não perturbe o rei destas terras marítimas
o bobo da corte é o carrasco o juiz e o cego

quarta-feira, 26 de maio de 2010

as formigas zanzando sobre seu braço morto
são um rascunho
perceba que é um traçado
do que há pra saber sobre quem você quis ser
e sobre o outro que você acabou se tornando
mesmo que elas não tenham a princípio conseguido
abrir um caminho pra dentro do caixão
através do seu crânio
sei que elas acham um jeito, no fêmur, no cu
de ir entrando, chutando a porta do seu esôfago
escancarando sua laringe
as formigas vão ser as primeiras a colonizar
o subsolo do seu peito
e descobrir o que você escondeu aí dentro
a vida inteira achávamos que era oco
a vida inteira achamos que era um eco
a passeio
e agora o pontilhado preto das patinhas delas
não pede a licença que você também não pediu
farejando tateando lambendo deglutindo estraçalhando
cada migalha do que sobrou da sua ruína
se vísceras têm consistência de quê?
me diga você, que é só isso
amontoado sob madeira, ossos com dores
labirinto de túneis escavados na carne
por operárias
será que dá cócegas ter tudo isso por dentro
no que antes era espaço vazio
no sangue represado, contido, só pra ocasiões formais
agora banham agora bebem
você formigueiro enxame de vida alheia
esqueleto de naufrágio, elas mergulhadoras piratas
rapinam tudo, olhos e rins
com um trabalho minucioso que sempre te deu preguiça fazer
substituir o que há dentro com o que vem de fora
dói ou não?

se você viver no terceiro dia
sacuda bem as roupas e bata inseticida
porque sobrou nada você por dentro é um mapa
das rotas migratórias
insetos no lugar de sentidos
corpos ínfimos fazendo as vezes de sentimentos
cheiros em vez de órgãos
e por aí vai, sem voltar a reconstruir
sem que consiga ser o mesmo
sem que consiga trocar a máscara
o veneno que te corre nas veias já ruboriza ninguém
para Cortázar


Meu capítulo 7 eu sussurro numa esquina surrada da augusta
naufragado nos olhos do meu amor.

terça-feira, 25 de maio de 2010

qualquer um pode fazer isso
virar aspirina
e virar dor de cabeça

sendo a lua artificialmente cabralina
luminária

o homem sentado,
na parada de ônibus da L2
no(r)te, lê sinais de fumaça
descobre que eles estão chegando

virar aspirina
e curar a aids
eles vêm a qualquer momento, não ouvem os passos no corredor?

os homens na passarela
farejam como cães
qualquer sinal que possa fazer isso
e ser assim imperceptível
bocejo tosse
suor frio febre alta
pressão baixa sussurros à sombra
da porta entre aberta
dor nas dobradiças, na garganta mudez
a mudez de um mímico que só ouve
aquilo que imitar

nas vísceras à mostra, não pulso
dispulso exangüe repulsa
compulsória em se abrir
harakiri dissonante

e se você recusar
ai de você se você recusar

já já te escancaram
você não está bem, poema meu
estilhaços do seu silêncio
dilacerarem meu ar
cínico de departamento de diagnóstico

reconstruir sua pele já não dá mais
você não é da poltrona
do cachimbo e do uísque
dos louros da vitória
você anda torto e manca e segura a respiração
quando a mulher passa
e não sabe bem aonde ir

nem aos prêmios nem ao esgoto,
poeminha de merda
não saber bem aonde ir
sem sistema imunológico
e estirado no meio da estrada
contemplar a noite
enquanto os outros tropeçam no seu corpo inerte
, moribundo estirado a um canto da estrada
moscas no poema
detritos de fonemas
escombros de de letras monumentais
gatos proliferando
gente sem dente

o poema sem vento sem velas náufrago
está nada bem
hesita cegou e espirra
na coceira de ser quem não é
poema na pele errada
disfarçado de poema alheio
de voz monocórdia emprestada
de ventríloquo do avesso

sorriso pardo
dedos trêmulos
na prestidigitação de si mesmo
na constelação de pontos finais

agarra a tábua se quiser,
meu querido,
mas dessa você não passa
pra Ferdinands loucamente

a carta nunca chegou porque
as palavras não precisam de envelopes
de pernas dos outros de fios telegráficos
precisam de sussurros gemendo na madrugada
chamados à ordem berros alaridos
aladas precisam de um céu
que coincide com o céu da sua boca

na minha constelação de segredos
não escritos

que bom que não há um manual
que você me ensina a ser feliz de um jeito
que ninguém ainda inventou
adivinho o conteúdo da carta que não chega
os motivos, caminhos, devaneios
leio tudo em seus olhos
e continuo no seu sorriso
as vírgulas devoro
as reticências devoro
os parágrafos, os travessões

e guardo o seu perfume e o seu gosto
que não cabem em nenhum papel

que bom que a carta não chegou
e te amar é uma frase sem ponto final

domingo, 23 de maio de 2010

a luz em gotas
o cheiro em parcelas
o toque áspero aos poucos tomando conta
a vodca em goles
mordidas, pequenos bocados de gritos

nada vem de graça
o que é súbito assusta
preparo um café
e ficar à noite acordado
escrevendo ao som de um pseudo-silêncio
só o pseudo silêncio
a reclusão de um burburinho
que um português antigo chamaria algaravia
só o pseudo mover-se na sombras
com silhueta falsa
e feições de máscara

esconde o que vim fazer
tirar o véu de tudo
arrancar o lençol que cobre
e espanar os móveis olhando seus olhos
o dia é nosso
mas menos que as noites em claro

à clara visão do seu rosto
cedo
um rápido desvio, não te contemplar
não com os olhos
mas em te devorar com todo o resto

quarta-feira, 19 de maio de 2010

palavras colhi de uma árvore infestada
palarvas sob
lavram o terreno sob
minha pele nas fundações açoreadas
da civilização que encontrei
pilares em potencial, que não alçaram voo
entre tempo e ampulheta e pedras


não é o momento em ruínas para que
palarvas lavem o que sobra

terça-feira, 18 de maio de 2010

Jarry viveu como quis com sua bicicleta, seu revólver e o seu absinto.
prefiro ficar mudo
a tentar descrever
linhas aéreas
rotas nacionais
e versos de cumprimento na bagagem

peito andarilho sem sufoco
e dedos peregrinos
o mundo imigra e vira outro som
outra máscara outros olhos baldios.
do sistema prisional.
convincente
convencional
conveniente

dos que guardam.
correcional
conivente sangue que não é azul
escorrer da faca entre costelas

dos que são guardados.
provisórios

da caixa de metal em que são guardados.
o mundo visto através de um código de barras
de metal
ou de compra
veracruz
o realismo convicente de uma ilha
visceral virgem

índio,
encoste o ouvido no meu peito índio
e pelos meus tremores de terra
decifre o que tenho a dizer
o avião decolar
num soluço pairar ingrávido
atroando

e hesita
tremelicando
uma casa de noz
nos olhos azuis do mar

fora de prumo
flutuar.
minha fronteira se dilui na sua
em você
corpos entremeados em ebulição trêmula

minha fronteira se constrói à sombra
de beijo de aeroporto
de manchas no território da nossa cama

há quatro dias sem escrever
o que espera é sorriso
na linha de chegada

esta caneta risca essa janela
tinta no vidro
no céu estilhaçado

um pássaro distrai
a curva é à esquerda

sua fronteira é assim
se espalhando sem cercas
me demarcar
desenhar um mapa na terra conjunta da pele que compartilhamos
ásperas macias que se encontram
que se tocam
correnteza de um contra o outro
sabidos de cor os barulhinhos

vou mesmo dizer que volto
para voltar a dizer te amo
é claro
e logo

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Uns segundos antes de desabar a chuva o vento pára, qual o fôlego de um silêncio que vem depois do tapa,
pelos exatos segundos entre assustados soluçarmos de iminência
e as primeiras gotas sulcar nossa pele

o pio de uma coruja
o chiado de um rádio
são a multidão de ecos na rua vazia
as pessoas a esmo
são faróis, iluminam a rua com sombras
farolete luz alta na névoa

somos no escuro a ponta vermelha de um cigarro
tomamos notas taquigráficas para um poema

sábado, 8 de maio de 2010

Um velho canino escurecido
Ana Paula Maia


sentado numa espreguiçadeira na frente de casa vê passar
mesmo nas noites mais abafadas em que a brisa é uma sombra
de brisa uma lembrança de que o lugar é menos quente
com um ventilador ligado e o sol caindo e a rua deserta
vê um garoto passar devagar como no poema um gato
no telhado em frente tenta alcançar alguma coisa, na hora que ele
para de procurar vê o velho ali na espreguiçadeira com um cachimbo
à esquerda um vaso de planta vazio com moscas rondando
a janela aberta a luz acesa ilumina a porta
o garoto anda querendo que todo mundo o veja
leva flores com um pouco de terra caindo do talo
provavelmente roubadas mas ali nem há jardins só o cemitério
e as funerárias têm flores
gritar com o menino, chamá-lo e ele não responder é
a desculpa perfeita pra seguí-lo e ver se ele vai ao puteiro
ou tem mesmo uma namoradinha ou namoradinho pra quem levar
algo que talvez sejam gerânios ou talvez sejam rosas
ou talvez ele esteja descontente de ter que trabalhar
entregando coisas pros outros
mas é a hora de seguir e tentar saber
aplicar o questionário proustiano mesmo que ele não descubra

Qual seu defeito mais deplorável? Sou uma pessoa cheia de defeitos, e todos são deploráveis.                
Qual defeito mais deplora nos outros? A intransigência, a prepotência, a intolerância.
Qual seu estado mental mais comum? Nos limites da idiotez, como quase todos os seres humanos.
Como gostaria de morrer?
e etc...

seriam prováveis perguntas, prováveis respostas
que talvez ele respondesse se o velho o abordasse
ao invés de parar na esquina sem fôlego
pedir um cigarro com preguiça de fumar e ver o muleque desaparecer lá longe
as flores como último rastro visível lá onde a esquina dobra

o velho voltar para casa seguindo as próprias pegadas
na contra-mão
tendo ensaiado contato e não conseguido tocar ele pensa que voltar é pouco

e deve ser pra quem já está ali mesmo

na lata amarela estavam as cegonhas
fritas
postas em envelopes à margem da rua

nigéria, ilhas fiji, macedônia
fritas postas de cegonha

na lata amarela do correio



*primeiro verso sugerido em desafio pelo Rafael Sperling
estender enfileirado
num varal no jardim
ventos fazendo a curva

dobrando a esquina
fugindo da poluição

quinta-feira, 6 de maio de 2010

supus que abrir o porão
espanar
da camisa a poeira de meteoros
desarmar as ratoeiras
religar a chave geral
trocar as lâmpadas
e deixar entrar o ar
fosse suficiente

pra deixar tudo menos sombrio
e menos assustador

quarta-feira, 5 de maio de 2010

vai partir o avião pra escócia
não é bem um avião
é um teco-teco e é o único
que vai pra longe
lugares ao sul e ilhas desertas

um pássaro ferido rasgando
as nuvens em dois
um pouco frio o motor gritando
a espera
ponho uma música acendo um cigarro
porque tem alguém martelando o andar de cima

o silêncio
o rádio berra beatles não dá pra escrever
e ele não pára

a janela
mente o espelho mente só a cidade lá longe é sincera
começo a discernir uma música entre toda a sonata
e pedaços de cimento que caem no chão

o pulso
firme quaternário de gente trabalhando a despeito
atrapalhando eu dormir e trabalhar

as flores
que eu ainda nem entreguei
murchando: gritam com elas

nem um aeroporto
nem um zoológico nem a caneta arranhando o papel nada se compara
minha cabeça orbita o barulho e vice-versa

à madrugada insone
tem alguém martelando o andar de cima

terça-feira, 4 de maio de 2010

a minha janela não dá pra rua
dá pra um pátio espinha dorsal do prédio
oco com varais e um eco
a luz na clarabóia promete pássaros
e sorriso da mulher que amo

a minha janela não dá pro mar
vidro e maresia não combinam
porque bom mesmo é ter nada que separe
dos espaços abertos
deitar na areia e contar as nuvens
não posso, tenho a minha janela

a minha janela não dá pro céu
mas também não é bueiro
não dá pro esgoto
não é uma ilha e nem um espelho
não vejo fábricas da minha janela
só a madeira um pouco gasta da moldura

dobradiças emperradas
meus olhos não dobram a esquina

a minha janela tampa a vista de uma língua
escondida quem usa
sabe de minuto a minuto
uma farsa entre enxergar e dizer


a minha janela não desagua em mim
desagua em palavras súbitas
se enrola num discurso meio sem-fim
                             meio-(sem-)fio
como legendando a minha janela
dar não no resto, mas em você
que é poema que leio em braille
outdoor que saboreio

a janela é o eixão à minha frente
movimento a despeito de mim
o asfalto lá embaixo
e meu pronunciamento são tudo
que enxergo daqui
vou ter que dar um jeito
de tudo que jogaram no lixo
a cada dia
deve haver algo
deve haver alguém
nem que não tenha nascido
ou já tenha morrido
sem se incomodar
com que eu os livros a janela
sejamos confundidos
com esse bule meio morno

segunda-feira, 3 de maio de 2010

caminho do avesso
na contra-capa da rua
cada pessoa é um verso para esconder

que não consigo iluminar mais que o céu,
que enlouqueço a lua
o vento caminhar contra a estrada
lamber cada reentrância
do asfalto desejando cada parada
rumores no mato, ali ele se mexe, perceba
a cerca rasgada ali

a palavra não sai da toca da boca
mas se sente, está lá
olhos à espreita

o sol se arrastar contra o vento
procurando procurando
o chão rachado do
dicionário e seus parágrafos
cabralinos como as velas brancas
que descobrem geometria na curva
da encruzilhadas

campos infindos contidos
nas entrelinhas do arame do poema

sábado, 1 de maio de 2010

cada um de uma cor
um põe um design pra falar por ele
o outro a aspirina

como se não houvesse amanhã
nem ontem
nem céu nem lua nem mulher amada

esgotar o eu nas palavras
a voz vinda do esgoto dos sentimentos
pra Ferdi

se o céu é um mapa de você
as estrelas marcam com alfinete os lugares por onde passo
a lua nem é nossa mesmo

mas todo o resto é
os versos têm a mesma órbita que eu
ela queria ser a rússia
pra repelir hitler e napoleão

Poema calafrio na espinha.


cascata de pixels, olhar inchado
dor de pupilas dilatas
não é a ressaca na quinta feira
ou bloqueio de escritor
blitz, paralisia dos nervos

olheiras depõem
incriminam
sobrancelhas arqueadas
depõem
olheiras incriminam

e assim vai sempre

pinçar a biografia na massa de eventos
escolher um ou dois
radiografia boigrafia lomografia versorragia

o que ainda puder ser escrito
mesmo com sono vale

tudo acaba em letra
em dor e angústia
preferir falar da dor,
dos pássaros nos fios de alta tensão
que formam meu sistema circulatório
sempre preferiram

a falar que doer
seja amor seja horror
não é resumo de poesia

nem música futebol cerveja
é obra completa de biografia

o que viver e aonde ir
e escrever ao invés de sorrir
é escolha de uns, ser condição

joelho infiltrado, ronco no pulmão
juntas, pele e sexo
nunca resumo
nunca atraso

porque poema e dor
e corpo e vida sob um céu qualquer
e cigarro e comunismo
e lua e poste e mosca
e cidades e ruínas de beijos
e vênus de milo e pés e maçãs
nada disso

isso aqui é um verso
e não um toque de celular

sexta-feira, 30 de abril de 2010

corpos costurados de outros modos
os sem-alguma-coisa
joão sem braço
mula sem cabeça
diversidade involuntária
densidade que não quero
pois
afundamos nos membros desperdiçados
no meio do lixo hospitalar

palavras amputadas
são
f
o
l
h
a
s
caindo de um outono

agenciamento do corpo pela medicina
o Com alguma coisa
forjar
voz mecânica e peito de metal
olho de vidro e silicone

não entre por aquela porta não abra o livro
se concorda com
que vendam meus dedos
que vendam meus versos
e me paguem uma pensão de herói mutilado pela guerra

linha e agulha e prótese
são um apólogo
sobre a cama no quarto branco

quinta-feira, 29 de abril de 2010

risadinhas nas entrelinhas da engrenagem
lá onde ninguém vê que elas existem
resmungos de rodapé, fumaça na cara

a voz mecânica e seu slogan
insira o cartão para abrir a cancela
desidentidade pêndulo
aceitar e reagir
cohabitar e sair de casa
silhueta irreconhecível
insolvente não resolvida

sombra charada
gesto enigma
bocejo esfinge

enfrentamento
de cimento em ruínas
a flores nascendo nas rachaduras

03:03

é isso, aquele momento em que
percebem a resposta genial
que não tiveram tempo
de pronunciar mas que
depois quando já não vem
ao caso vem à tona

esquecer a palavra exata
no fundo e buscar
quando menos precisa

quarta-feira, 28 de abril de 2010

um homem numa cama observo
o amanhecer iminente
a lua clara atrás do céu nublado
os barulhos que são meus

poucas coisas são minhas mesmo
e o que é eu não pedi

ele escrever cada dia melhor
eu escrever cada dia menos
o que é meu
o que é outro

porque aqui deitado
posso tocar poucas coisas
o resto é vida de pessoas
lá fora

é um mundo
e eu não gosto dessa palavra

um sussurro que ouço do vento
é de quem?

a gota na torneira mal-fechada
a palmeira numa ilha deserta
é propriedade? não
madrugada em mim

o sol nascer é tão meu
quanto puder partilhar com o poema

terça-feira, 27 de abril de 2010

saí porque sim
saltei do ônibus
acordei de um sonho
caí de mim

perceber olhos em lugares inéditos
perceber lugares inéditos em respirar
inaugurar um sorriso
fundar uma cidade

nada de árvores por enquanto
só os dois ali à sombra dos toques

segunda-feira, 26 de abril de 2010

sem motivo aparente voltei pra ela
ato seguido percebi
não foi só o sorriso, as covinhas
foi ela ser uma primavera toda só pra mim
encontraram um homem num museu
homem vestígio
vestido de reticências

só esqueleto e barba
os farrapos do terno
eternamente fugindo

pasta na mão, consulta
é crânio, omoplata, fêmur
é tíbia, é fóssil

tudo em atraso
vírgulas desabrigadas

fora de hora, esfarela os dedos
marca o relógio de ponto
homem pó
homem em pedra sabão
ossos à mostra no saguão

encontraram um homem num museu
pela arcada dentária em forma substantivo abstrato
sei que esse homem não sou eu

domingo, 25 de abril de 2010

não sou um muro
muito poucas coisas são
a não ser
aquele amontoado de tijolos

não sou uma ilha
água não me rodeia

sou oceano de coisa alguma
e menos ainda
a pedra no meio do caminho

mas

o outro de mim, meu duplo,
sósia, na verdade - há diferenças -
me cumprimenta
velho de guerra
meio cansado de me revisitar

espelho torto das palavras
acho que é isso que sou

sábado, 24 de abril de 2010

correnteza
quero o frio de abrir a geladeira muda
e perceber que sou só eu e aquela vodca aqui
metafísica fajuta de reclusão
com certeza
uma coca-cola e um cigarro
pra sentar no pilotis
e esquecer tudo na superfície
em que sou pó de mim mesmo
e pó dos meus versos
me afundar na contra-mão de pensar
habitar na contra-mão de sentir

aquele cara passando lá longe
apressado com a mochila
ele, tenho certeza, sabe, nem tentou
e já é melhor que eu que falhei
só vejo que na grama em que ele pisa
meus rastros apago

meus dedos, meu rosto
são material de demolição

quinta-feira, 22 de abril de 2010

encontro poeta/atriz

Os dois são como o debate entre nixon e kennedy, quem ouvir só as vozes é arrebatado por ele, quem vir os gestos se deixa convencer por ela.
Eu procurava tornar-me tu porque tu ias morrer 
Sophia de Mello Breyner Andresen

yo buscaba hacerme otro
de buñuel a cervantes
a ser como un espejo que miente
con la forma del água
que mató narciso reflejar
el poema que me mata
palabras afiladas por la lengua
retorcida de aquella lengua
del otro que fui
de que me disfrazé mientras
andaba porque sabía
iba a ser yo la mentira en cuanto
ojos mantenidos en el espejo
para que no caigan y lo 
tenga que sustituir por vidrios
robados a los edifícios de la ciudad

el que vendré cuando me muera
es eso
trozos de ciudad y
trozos de otros con los que cambio
mi memoria y mi rostro.

* queria tornar-me outro
de buñuel a cervantes
a ser como um espelho que mente
com a forma da água
que matou narciso refletir
o poema que me mata
palavras afiadas pela língua
retorcida daquela língua
do outro que fui
de que me disfarcei enquanto 
andava porque sabia
a mentira seria eu em quanto
olhos mantidos no espelho
para que não caiam e eu
os tenha de substituir por vidros 
roubados dos prédios da cidade


o que virei quando morrer
é isso
pedaços de cidade e
pedaços de outros com os que troco
de memória e de rosto.
diástole do pulso em suspenso
esse pulso hesitante: soluço espaçado
a diástole começada porque
se o resto é tragédia e da grega
o poema é distensão
é meu rosto fazer as pazes com as ruínas da cidade
e os ponteiros girar ao contrário

a diástole pergunta
em ritmo binário
uma escolha e uma conseqüência, por favor
por ser sem medo passar
e às estrelas reagir
sim/não bem-me-quer/mal-me-quer
o verso não comporta a palavra dialética
é uma via de mão única
entre voz e ouvidos

diástole capenga
daquelas de dor na boca do estômago
tique taque tique
as últimas palavras
as considerações finais
só puderam ser, desculpa, essas
tomar um ônibus de madrugada
saltar bem longe daqui desta lua com seu sorriso
é o jeito de escapar
dessa diástole expansiva engolir
engolir algo que não fez

as contrações de um parto
do parto do que virei
de um jeito que não escolhi
num trem noturno de que me lembro
vagamente
isto é diástole
é meu pulso sendo lido
por pessoas que vim ser
e que fui sendo é antes de mais nada
um silêncio no canto da boca
espremido entre os dentes

ameaça pois, meus segundos
estão contados

quarta-feira, 21 de abril de 2010

se o poema não te olha nos olhos
e troca de calçada ao se aproximar
se tem rosas no lugar das palavras
e musas no lugar das pessoas
se escovou os dentes antes de vir
e limpou a merda nas paredes
se os órgãos dele estão ali rosados e rijos
o pulso é estável obediente
ele não serve
uma televisão nova e uma vaga de estacionamento eram suas grandes ambições atê vê-la ali parada olhando através da vitrine, uma espingarda igualzinha à do Hemingway;
faltou, ela diz que foi lapso, uma carta ser mandada.

terça-feira, 20 de abril de 2010

sobre ficar velho sob o céu de brasília tenho pouco a dizer
não sei se fui feliz
se aquela mulher atravessando a faixa da comercial foi minha
se esse cara vendendo melancias olhando o céu já deu nomes a nuvens
se apaguei meu cigarro no parapeito da rodoviária
enquanto voltava andando na madrugada
se esse sorriso é só dissimular não ver os carros de vidro fechado
se aquela parede merece um verso meu
ou se este verso merece ser a parede em que me escrevo
se morar num jardim no meio do concreto é ouvir o vento sussurrar nas frestas
"essa cidade é o céu de pernas abertas"
se esse mendigo é pioneiro, nordestino, navegante ou astronauta
aterrissado plantado como os prédios burocráticos:
entre as árvores se contorcendo pra tocar as nuvens e o chão rachado
se foi adeus ou saudação fascista o braço estendido de juscelino
abençoando a capital do alto
e os olhos esquecidos da multidão vendo tudo nas rachaduras nas fachadas
dos edifícios e dos rostos
se tentar não lembrar do barulho dos carros no eixo desde a minha janela
é melhor ou não que descer e sentar no pilotis
se é tudo ou nada em frente ao trânsito
se gosto mais da setecentos e seis sul ou da duzentos e seis norte
não sei, só sei que ainda nada sei, exceto uma coisa

só sei que andar na sua boca aberta me arranhando em seus dentes afiados
me faz descobrir o branco pousado sob o azul
que no ângulo de cada curva estou eu e o suor do poema a céu aberto
e vice-versa
em mim o ângulo à luz de imensidão

O jardim.

As paredes olham em silêncio
de tintas
ao redor
o céu e eu dentro

murado por folhas brancas de palavras
rego mudas de vírgulas/pausas
para me separar do que digo
sei de você por ruínas
migalhas do seu olhar pelo caminho

meus toques máquina de escrever
são letras na sua pele
constelação de ruídos do concreto rachando

sábado, 17 de abril de 2010

estorvo,
um pássaro grande que as asas pequenas
impedem de voar

não é preto como muitos pensam, mas marrom
camuflado entre raízes e folhas
parar cortar o tornozelo de quem passa

produz som característico
embaixo de janelas
quando a madrugada faz psiu

fura pneus
informa a direção errada
e ri muito quando isso faz alguém se atrasar
é estranho isso de insetos percorrendo o corpo
tudo dói, as costas, as juntas, a cabeça
no meio de não me reconhecer em mim mesmo
porque somos nós em amarras

mas a sensação de formiguinhas
minúsculas usar minha pele para traçar rotas
pontilhadas é insistente
perigosa como cócegas

vou pedir para elas desenharem uma ponte
e gôndolas para te navegar

se meu corpo é um continente
os braços são uma península e os dedos ilhas
um continente rodeado por arquipélagos portanto
o seu são os rios, chegando perto
no caminho contrário ao do mar
meus toques náufragos no seu rosto
querem se lançar a flutuar no sorriso que você tem
quando são eles, quais crusóes,
as formiguinhas pelo teu corpo.
para Martina Gedeck

uma silhueta de atriz dos anos trinta
uma boca francesa e um nariz grego
eu te chamar de electra clitemnestra ou
rita hayworth
é indiferente
porque nem a vontade de um deus numa
tragédia dessas de você no outro lado 
da tv de madrugada
mudaria o sofá agarrar meu pé
não deixar mover nem piscar
só pra te ver de longe, quase à espreita
sorrindo pra mim por trás de uma obsessão
qualquer dessas de gente de cinema
mesmo que nenhum deles tenha esses olhos
que são um solo de sax depois da meia-noite
e esse jeito que garante que antes de ser
cozinheira você era bailarina
num bolshoi ainda soviético em que 
o realismo é a farsa do sonho
em que suas mãos esculpem o ar
separadas das minhas por um vidro.
de todos os carros que passam rápido
à luz de interromper o que vejo
o que vejo do outro lado da rua

no outro lado de fora nenhum diz lá muito mais
do que já sei
porque já sei que na outra calçada
é ou você esperando ou você partida
ao meio entre ir e dar ao tempo cinco minutos

a rua desanuviar
a rua deixar escorrer porque é um varal de ruído
e fumaça e metal retorcido

enquanto o semáforo nos detém às margens do asfalto
sou devorado por corvos abstratos vindos dos postes
preciso de um barulho que cessou
e eu nunca ouvi mas sei que estava lá
do eco das platéias no concreto
que nos separa
mais do que do eco de portas batendo
onde encontrar outro campo de batalha
se nesse aqui eu luto com o vazio
com um silêncio mais da derrota que
de outra coisa
preciso que um barulho que cessou
intervir seja motivo de continuar a lutar
apesar das outras atrações no circo
funâmbulos e pugilistas me fazem
perder o foco de mim

um espetáculo de gladiadores
desbaratou todas as esperanças do poeta.
entreguei à noite
os restos dos que fui
terminar  é recolher o que sobrou
sendo a sombra a lua e a voz
um resquício dos que sobrei

terça-feira, 13 de abril de 2010

não fui eu
são sempre os vesgos
um olho no céu outro no espelho
pra ver onde me acham primeiro


*com suspiros da Katrina.
-sexo de qualidade
ou
fico tranquila no meu romance água com açucar entediante?
-Não
Porra, amor
Quando eu te conheci tu era a Harry Heller da Augusta
Olha pra ti agora
De que que adianta cada verso que você leu se você nao pode jogá-lo na cara do primeiro otário numa mesa de ar
De que que adianta passar de ser invisível a ser legal que eu quereria comer se é pra ficar se resignando ao mundo?
o sexo meia-boca não fui quem inventou
nem você
-sei lá, porra

domingo, 11 de abril de 2010

não fui feliz
um avião entrecortado na penugem branca do céu
um tremor, a pele arrepia
ou eu resignado ou o céu se revoltou

sábado, 10 de abril de 2010

it feels like Cryptozoids
Ginsberg


devo a cada segundo
não perguntei à esposa de poeta
numa cadeira de balanço num jardim
num sonho feito o ginsberg
mas vi

algo por ali
se movendo longe o suficiente
sem ser miragem sem ser sombra
mesmo sem distinguir a silhueta sei
é uma pessoa
as feições borradas pelo cansaço
pelo caminho

devo a cada segundo
devo saber
por reter
o eco dela andar na rua
mas mais vazia
do que nas outras vezes

entra numa loja
me detém e nunca aprendo seus olhos
a fumaça como um sinal do cigarro
um sinal de continuar
chove não estou seguindo
sabe aonde vou
mas mais vacila do que as outras vozes

acompanha meus passos antes de mim
pára para me dar tempo

devo estar enganado
porque devo
muito a cada segundo
Hoje as pessoas quiseram ser casuais
não se engajar muito em coisas simultâneas
fluir e sorrir pelas ruas/ sem rugas: só bom dia
flanar e sentar com desconhecidos no café da moda
um chocolate da caixa e um obrigado,
com gelo e açúcar, por favor
tentar espontâneas não agradar de propósito
mas nunca contrariar, pedir com jeitinho, concordar, agradecer a deus,
se desculpar cordial,
falar baixo para não incomodar, mas num tom bom
para não ofender
sussurros para fazer rir sem vociferar
e não abrir umas feridas
todo mundo decidiu ser mais casual
porque planos porque conseqüências
porque rosas fugidias entregues no portão
são mais preocupantes que sair correndo
e trombar ao acaso tropeçando
no sapato reluzente

sob um sorriso escancarado e um vestido acabado de passar
e suco numa bandeja e quer-que-eu-ligue-o-ventilador-?
o eu-lírico tentar estancar o vazamento
na sua veia poética, mas só conseguiu
manchar o sofá.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

O quarto é cheio de barulhos
que não sou eu
cores fora da palheta
suspiros que são um soluço de silêncio
movimentos no canto do olho

no meio dos cheiros de sempre
no meio dos que a palavra inventou
surge um imprevisto

existe o ruído do lápis arranhar o papel
o farfalhar das cortinas
                                     sim
isso não impede
o vulto atrás da porta
a lua na janela o som dos carros na rua em frente
o cinzeiro
uma camisa no cabide de
                                        também murmurar

esta frase é a obra completa
a única que entendi o quarto dizer
as outras são segredo
nas dobradiças rangerem
nas rugas no lençol
no fundo das gavetas
por desvendar

um outro segredo destes
é este olhar amarelo
do gato que me ignora
de quem quero entender as pausas
o parar e captar as silhuetas ao redor
escrivaninha mãos e teto
ao invés do miado de costume

do andar que aprendeu com outros
extrair o que só ele sabe

escondido
no interstício
feriado dos sentidos

entre o que o poeta combina
e o que o poema comporta
ser o que os olhos não enxergam
o que transborda o verso.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

enquanto ela não sai do trabalho

Seus olhos outros farfalhar
numa sala de repartição
espero burocrático lendo uma revista
meu rosto mesmo
escorre imitando as horas
nem um barulho se ouvia.

teclas copos plástico amassando
as rachaduras no sofá
telefone longe janela mostra o que perdeu
gravatas
pilhas de relatórios registram
jornada papéis e esmalte roído
café e galões 
respostas em prontidão a perguntas que ninguém fez

o relógio de ponto 
põe fim a ela sem mim.

meus feitos de aerossol
dedos, poemas, sorrisos pulverizados
flutuam partículas de mim esbarrando em outras
como se esse momento/ esbarrar/ pudesse durar dias
em suspensão ao meu redor se precipita um mundo a parte
em que reflexos inadvertidos em espelhos mentirosos brigam com
grandes superfícies de água que também não dizem como são quem
habite quem habite o que se precipita em mim ao acaso de ver
e sonhar que vi e encontrei, que o meu pó boiando no ar
é de antes dos outros de antes de perder mal-
desenhados na areia feitos de aerossol

terça-feira, 6 de abril de 2010

meu corpo é uma entrevista com os objetos que desejo
meus gestos e minha voz
fluem entre dois
os que sou e os que fomos

outonos esquecidos de cigarras
serrando o ar

céu enferrujado
as folhas que caem de mim e
da minha respiração lentas têm
um cheiro das suas roupas

sonho que você abre a porta e me olha enquanto durmo
ou meio acordado ouço um barulho
intermitente de você entre as minhas colchas

custa acordar porque quero
o corpo dói porque quero
ser outro
contra o que estou obrigado a fazer

ter outros olhos no espelho
outras mãos entre as suas
que também não são mais as mesmas
são mais jovens mais velhas
essencialmente enrugadas pelo que viveram

nossas raízes nas artérias que nos delineiam
unem porque nutrir não nutrem
são só o rastro na areia do passo do que passou

se terminar este livro
a última coisa nas últimas prateleiras
último dia de um começo de sonho mal-acabado
é ponto final do que vim viver agora.

sábado, 3 de abril de 2010

quando só três pessoas sabem e as outras acham que foi delírio
fechar as portas e fechar as janelas
a casa pede segredo guardado debaixo da cama
o quarto tem um baú com cartas lacradas: ninguém
quis saber de passado de passar o passado adiante
o lençol tem arabescos de veias abertas no justo contorno do corpo
que depositaram ali
quando só três pessoas,
                                       [uma cozinheira, aquele menino e a louca
                                                                     do quarto nos fundos]
sabem que não é hora de contar
as histórias de antes de dormir viraram sagas
que não terminam no sonho
o espelho rachado só mostra quem não são: os de antes morreram
só mostra o pó acumulado sobre a madeira
o menino correndo pelo quarto tentando se esconder sob o tapete
a cozinheira resmungando recusando espanar
- a vida é patrimônio de reacionários
não mostra a louca entre as torres de livros em seu quarto
trancada por dentro o dia inteiro fazendo barulho batendo
as portas dos armários onde dorme
o espelho mentiroso não reconhece
os rostos desfigurados
                                    [pelo tempo
                                     pelo incêndio dos livros enquanto dormiam]
ou quem mudou de opinião foi o espelho
ou foi quem contempla
um cigarro mal-humorado no canto da boca da cozinheira já foi
o sorriso escapou cabisbaixo assim que os dentes caíram
à loucura dos cabelos desalinhados o tempo somou versos rabiscados
na contra-capa amarelada dos romances
um pomar no quintal preocupou a princípio
na época em que mais gente vivia
pensando em cercas e limites
um outono sob as pálpebras nubladas
as folhas tombaram escorreram com os fios de água

dessa chuva que contra as janelas rabisca os mesmos versos
que ela reteve em si

a língua trancada esqueceram entre quatro paredes brancas
a casa não ecoa com a voz com os passos na madeira acumulado sob o pó
com a música antiga na cozinha: os lábios no ritmo do rádio
a língua trocada deixaram para os pássaros
que emudeceram entre flores: ipê serve
se não for o outono mais quente desde que eles vieram parar aqui
se as gavetas não rangerem
se os cômodos não estão sendo invadidos aos poucos pelas plantas mais ávidas

sobrou o cinza do céu tingindo o cinza das fotos, os restos nos cinzeiros
os tímpanos de antigamente se viciaram nos mesmos ruídos
as palmas do carteiro no portão e o vento na sala vazia
são os de sempre

sexta-feira, 2 de abril de 2010

porque a noite
porque a silhueta na calçada oposta
porque vejo por entre os carros

a sombra se afastando não me pertence
a seus pés tudo que impedi a língua que criamos de dizer

quem matou eliseu
sons abafados no labirinto atroz

as ruas estreitas se contraem em mim
palpitam
tremulam a cada caminhão de lixo

cada voz que é presença
na praça deserta casas insones
nos bancos recostados quem como eu

nem com cigarros consegue passar
por tudo isso

de novo.

Rua nublada/rabiscos de água nos vidros

chuva na sua fachada branca
sulcos na pele deste sobrado
duas janelas cabisbaixas, po
rta trêmula escorrem gotas a
os poucos evitam contempla
r uma pinta veias singelas inu
ndadas depois de tanta conv
ersa que serviu para tão pou
co chuva nos vidros no rímel
não posso mais secar ao sol
o sol mais baixo quase encosta na pele
sonho: quatro corpos à imagem e semelhança
em volta de uma piscina
quatro pernas de manhã duas à tarde três à noite
contemplando a água e a si mesmos na água
deixar de sonhar meu mundo
e desidealizar a mim mesmo

o reflexo é impostor
meu olhar não é o mesmo do espelho

palpável último suspiro
sorriso último que como nuvens se infiltra
entre as portas entreabertas dos versos
o passo mais torto na nossa dança
não quis tristeza
nem sorriso
cobrava nada
um comunicado que deixei no ar
para deixar no ar

nem eu que achei que podia mostrar tudo
com um punhado de palavras
consegui

talvez eu tenha errado
talvez seja só a dor do parto de um olhar novo sobre a gente.

quarta-feira, 31 de março de 2010

O tal roteiro.

O olhar não tem esquinas, preciso de um bisturi para ver por dentro das pegadas no concreto A cidade que construíram para mim não deixou rastros. Minha vida já começou fora dos planos. Descarrilou quando nasci, em meio aos berros e aos olhos arregalados.


Vidros velozes refletem meu vazio na multidão. Estes meus olhos refletem as pessoas sem rumo. Entre manter e mudar fico com a primeira, enquanto a segunda me contamina. Docemente encima do muro, o essencial me cega, não me permite agir, me escapa.

Incomoda todo mundo decidir por si mesmo, apesar de saberem que espero contato.

Quero entrar nessa boca enorme que me enfrenta. Seus ruídos me atraem. Uma freada uma música qualquer, uma cor. Vertigem no centro do vazio planejado. Cidade plano, cidade plana. Usamos nossas asas para correr nos espaços abertos. É como se os prédios também tivessem uma esperança. Em meio ao turbilhão as coisas perdemos o contorno. O que me tornei? Apegada a um enquadramento, tão a deriva quanto eles, que me estendam uma mão por cima dessa barreira é questão de sorte.

Um silêncio me veste. Não consigo tocar quase nada por aqui porque rodopio. O céu afasta meu corpo deste planalto. Se a utopia ruiu, é hora de restaurar meu peito ou as calçadas? Não sei, mudei de mim e a cidade nem é mais a mesma. Apagamos os esboços.

Preciso perder um pouco da vontade de situações. Viver é respirar sem culpa. Tropeço com gente, as cores em meus olhos vão na frente colorindo o resto. Ou o mundo está fora de foco ou sou eu com meus devaneios.

sábado, 27 de março de 2010

veio um vento/derrubou o que há ao redor
sou o silêncio velho de um final
daqueles bem clichê.